quinta-feira, 18 de julho de 2013

Crónica de uma greve não anunciada

Levantei-me hoje tranquilo, bem-disposto até, aliás, como quase todos os dias acontece, não fosse o momento de preocupação e angústia que estamos a viver por causa da saúde do meu pai.
Posso deitar-me cansado, chateado, frustrado que isso não é problema. Quando o dia começa e a persiana do quarto sobe, trata-se de um novo dia para viver.
Como sempre, roupas da cama para trás, janela aberta enquanto tomo duche, ao mesmo tempo que Norah Jones, Incognito e Diana Krall passavam na Smooth FM.
Hoje decidi desfazer a barba de três dias e as calças de ganga rotas e coçadas deram lugar a outras mais “apresentáveis”. A t-shirt esgaçada, foi trocada por um polo preto e em vez das botas, apesar do calor, um sapatinho nobuck mais de acordo com a ocasião.
No final, um perfumezinho suave para não enjoar a interlocutora.
Vá lá saber-se porquê, mas nestas alturas lembro-me sempre da minha mãe que, embora tenha aceitado sempre os meus devaneios, na hora de avaliar a nossa apresentação, dava sempre a sua opinião, normalmente assertiva. Reconheço-o hoje e que saudades tenho de a ouvir.
Cama feita antes de sair de casa, pego na pasta e no saco, com três quadros para amostra, preparados de véspera (Entenda-se véspera, algumas horas antes, uma vez que, como diz a minha amiga Né, nós somos da espécie que nunca diz até amanhã quando nos vamos deitar, porque já passa sempre da meia-noite. Até logo, portanto…) e saio rumo à Câmara Municipal de Alcochete, não sem antes passar na pastelaria D. Manuel, na Atalaia, para comprar pão fresco, de Sesimbra ou da Lagoinha, de preferência. A minha filha gosta e eu aproveito-me da causa. Os pequenos-almoços cá em casa voltaram a ser prática comum.
Desta vez, os 8,8 Km que separam a Atalaia de Alcochete fizeram-me lembrar o trajeto percorrido por alguém que vai fazer um exame. A vereadora da Cultura estaria à minha espera para termos uma reunião agendada há quase um mês. Revi todo o meu discurso, elaborei respostas a questões novas que poderiam surgir e reavaliei cada um dos meus slides relativos ao meu portfólio. Tudo bem, pensei.
Alcochete é uma vila encantadora a qualquer hora do dia mas, de manhã, guarda ainda aquela tipicidade das vilas piscatórias, salineiras, bem portuguesas, em que o desejar bom dia é prática comum entre pessoas que se cruzam.
Com a pasta em pele a tiracolo, que me foi oferecida por alguém muito especial e um saco de transportar molduras, cuidadosamente escolhido há dias, contendo três trabalhos meus, foi assim que saí do carro, depois de bem estacionado, à sombra.
A caminho da Câmara não pude deixar de sorrir para mim mesmo e lembrar os burros ajaezados até mais não, fazendo pela vida.
O movimento no largo da Câmara era anormal. Muita gente à porta, a fumar (!?...). Entrei…
No átrio a mesma exposição de há semanas. Pensei, devem mantê-las por um mês (!?...)
Dirigi-me à senhora que se encontrava na recepção, que tranquilamente falava ao telefone. Verdade que interrompeu a conversa para me atender. Sem que eu dissesse nada, retorquiu simpaticamente, “Estamos em greve!”…
Sou a favor das greves! Sou a favor dos direitos dos trabalhadores! A greve é realmente a grande arma de luta dos trabalhadores.
Não quero transformar este texto num manifesto político.
Fico-me pelo respeito que tenho por todos aqueles que vivem dias difíceis e lutam por melhores condições de vida. Também eu, estou a sentir na pele os dias duros que se vivem, depois de mais de trinta anos de trabalho.
Muito menos quero transformar este texto num rosário de penas, mas o respeito por esses, é o mesmo respeito que não senti hoje para comigo.
Nos anos que levo de trabalho, considerei sempre o próximo. Tive sempre o cuidado de consultar a minha agenda e, sempre que necessário foi alterar algum compromisso, por uma questão de princípios, fi-lo por iniciativa própria. A ideia de poder estar a prejudicar, ou simplesmente não respeitar o trabalho e o tempo de alguém, só por si, perturba-me, como perturbado fiquei por ver aquela gente à porta a fumar, enquanto aquela simpática senhora na recepção, desfazendo-se em desculpas, tentava perceber ao que eu ia. A imagem que guardarei é a de “guardiã do templo” (Não sei se no interior havia gente que não aderiu à greve!? A vereadora da cultura sim, definitivamente).
Por fim a simpática senhora lá entendeu que eu era um “fornecedor de serviços para exposições” (!?...)
E assim vamos andando… Um departamento da cultura que desrespeita os cidadãos, trata mal os “artistas” e que nem sequer explica à recepcionista da Câmara que um “fornecedor de serviços para exposições” é um simples “artista” e que é esta “raça” que justifica a existência de tais departamentos.
Sem qualquer ressentimento, mas chateado, voltarei amanhã para reagendar a referida reunião, não sem antes procurar consultar o “planeamento de greves” para os próximos tempos.
Quando saí a porta da Câmara Municipal de Alcochete, ao ver o grupo de fumadores, não pude deixar de pensar que, pelo menos, esta greve contribuirá para um aumento significativo do consumo de tabaco. Não quero com isto dizer que haja um aproveitamento político da situação e que se passe a imprimir nos maços de tabaco, “Cuidado, fazer greve pode matar!”
Matar não mata, mas mói.
No regresso ao carro, senti-me, aí sim, um verdadeiro burro ajaezado à Andaluza!...
Vim para casa e preparo-me para comer o pão da Lagoinha e de Sesimbra com a minha filha.

Ai Laura, Laura, o que te espera… 

Um comentário:

lmv disse...

Excelente!!! espero que continue.