terça-feira, 30 de julho de 2013

Sonho de cartão

Ah Lisboa colorida!
Sem vergonha da miséria
Onde o pobre não tem vida
Poder tê-la, ai quem lhe dera...

Assim dorme ali deitada
Tua filha que te ama
Era já de madrugada
Quando fez a sua cama

Sobre um colchão canelado
De cartão humedecido
Força o sonho adiado

Sem ter sono e sem maldade
O seu corpo adormecido
Vira as costas à cidade...

… /… 


Medo

Representam em segredo
Os seus grotescos papéis
Espantam fantasmas a medo
Do vício são já fiéis

Quando de novo o vazio
Insistir em se instalar
Os dias de muito cio
Vão correr a procurar

Porque o pavor de perder
À noitinha o aconchego
Hipoteca a alegria

De deixá-los reviver  
Agitado o desassossego
Do amor que já foi um dia

... /...

domingo, 28 de julho de 2013

Mágoa ao vento

Esgotaram-se as palavras
Confundiu-se as intenções
Dissemos o que não queríamos
Abrimos os corações

E agora fica a mágoa
Porque aquilo que foi dito
É como uma marca de água
No coração um registo

E só mesmo um grande amor
P’ra esquecer tal contratempo
Reverter toda esta dor

Esquecer por um momento
Da mágoa esse sabor
Palavras, leva-as o vento…

… /… 

sábado, 27 de julho de 2013

Inevitável

Que a espera também compensa
P’ra isso basta esperar
O viver com muita pressa
Pode a vida atropelar

E a vida que se cumpre
Vive-se a cada momento
Se se morre num vislumbre
P’ra quê apressar o tempo?

Vale a pena pois esperar
O que está p’ra acontecer
E mesmo que se não queira

Não se vai poder parar
Pois se assim tiver de ser
De evitar não há maneira

… /…

Para sempre o Alentejo... (texto dedicado à família Vinagre)

O Alentejo entrou em mim, vão completar-se em Agosto, vinte e quatro anos.

Não que nunca o tivesse visto antes, uma vez que os meus pais tentaram dar-nos a conhecer, a mim e ao meu irmão, o nosso país, primeiramente.
Verdade, também, que, da parte do meu pai, existiu sempre uma preferência por viajar a Norte, fruto de memórias forçadas da sua meninice. Afinal, o Colégio Interno de Lamego e as férias passadas em Castro d’Aire condicionaram para sempre o seu imaginário de jovem adolescente. Creio hoje que, desde sempre, nele se instalou um desejo de estar bem consigo próprio quando recordasse a sua juventude, de certa forma triste.

Mais tarde, lembro que, sempre que de uma viagem se tratasse, a mesma era anunciada e discutida em família, normalmente à mesa da casa de jantar, logo após a refeição, ocasião em que o nosso pai desenvolvia longas conversas connosco. Foi assim que tomámos os primeiros contactos com a história e geografia universal e europeia, aprendemos cidades, capitais, moedas e bandeiras e foi assim, também, que ouvimos as primeiras músicas de Gilbert Bécaud, Hervé Villard, Carlos do Carmo, Água Viva e começámos a rir com o Raúl Solnado. Afinal, o gira-discos Radiola a pilhas ou de corrente elétrica em forma de mala foi muitas vezes a sobremesa dos almoços ou jantares em família,  altura em que faltava a luz diariamente, quase sempre à hora do telejornal.

De volta às viagens dentro de Portugal, quase diria que o nosso mapa de Portugal faria sentido traçando uma linha que dividisse o país à latitude de Lisboa. Poupava-se papel e o volume no porta-luvas do velho Mercedes seria menor.
Ficava, assim, o Sul relegado para segundo plano, criando em nós uma aura de mistério.
E o sol, e o calor, e as praias que ouvíamos dizer serem as do Algarve as melhores!?
Qual quê, quando comparado com o verde do Gerês ou do Buçaco, a água da Curia, do Luso, de Vidago… e o que dizer da gastronomia do Norte!? Rica, muito bem servida (!?...).

Assim crescemos durante a primeira dúzia de anos das nossas vidas, felizes por termos tido a sorte de poder viajar, experimentar tradições, fazer amigos nas férias, vermos neve pela primeira vez, ter conhecido a segunda e a terceira cidades do país, naturalmente o Porto e Coimbra. Mas, e o Alentejo!?...
Cheguei a pensar que nunca o iria conhecer. Portugal terminava em Tróia. Havia como que uma linha que passava por Setúbal, subia até Abrantes e seguia até Espanha, tendo o Tejo como fronteira.
Afinal, guardado estava o melhor bocado.

No ano de 1977, uma situação extraordinária aconteceu nas nossas vidas! Eu e o meu irmão recebemos um convite de uns amigos nossos para passarmos uma semana no Algarve, na Quinta da Balaia, ao pé de Albufeira! Finalmente a oportunidade de desbravarmos terras do Alentejo e chegarmos assim à terra prometida do Algarve, que para nós era quase como que o estrangeiro…
Na semana após o falecimento do nosso avô Rafael, em Setembro, a título de férias merecidas e a fim de todos podermos aliviar a carga emocional dos últimos tempos, fizemo-nos à estrada, desta vez justificando a existência do meio-mapa nunca utilizado. Até as cores da impressão, que diferiam de província para província, eram mais vivas, tal a falta de uso.
Curioso que, mesmo assim, dessa viagem ficou-me o Algarve na memória, mas o Alentejo foi percorrido à velocidade “louca” que o velho Mercedes permitia… Guardei o Canal Caveira e a Mimosa como pontos obrigatórios de passagem e o sonho de lá voltar um dia.

Dez anos se passaram até que eu, já encartado, pudesse aventurar-me naquela que foi uma das grandes descobertas da minha vida. Quis o destino que, no desempenho da minha atividade profissional de então, me calhasse o Alto Alentejo como território para trabalhar, de Vendas Novas a Elvas, das Alcáçovas a Campo Maior, de Portel a Pavia! Mal sabia eu o que me esperava e o quanto a minha vida se modificaria a partir de então.

As memórias vêm à tona e começa a ser difícil ordená-las.
Com a tranquilidade própria dos dias no Alentejo, tento saboreá-las uma a uma. Nem sei qual aquela que, de forma mais tranquila, me deixou para sempre na boca o sabor daquele tanino sedoso que só o tempo apura.
Chego à conclusão que são as pessoas, uma vez mais, o que realmente importa.
Recordo agora o Professor Ulisses Duarte, com quem comecei a trabalhar, andava eu, ainda, no liceu. Disse-me ele um dia que as gentes do sul olhavam mais longe, de acordo com a paisagem local, a se perder de vista. Queria com isto dizer que os sonhos eram infinitos e a suas mentes não eram redutoras ao ponto de se contentarem com o vazio dos seus dias e repetição das rotinas diárias que têm o sol como marcador maior.

No Alentejo, as pessoas dão os braços e juntos embalam num ritmo calmo, só visível na própria força do trigo que cresce ao vento nas enormes searas ao som das cigarras escondidas, por entre sobreiros e chaparros.

Começar o dia em Mora, passar por Cabeção, Almoçar em Arraiolos, dar um pulo ao Vimieiro e ir dormir a Évora, para no dia seguinte, sair por S. Miguel de Machede, Évoramonte, Estremoz, saborear um bom Borba tinto na terra que lhe dá o nome, lanchar em Vila Viçosa e regressar a Évora pelo Alandroal e Redondo… só de pensar, sinto vontade de regressar.

Por entre estes percursos, a generosidade é uma constante. Não esquecerei nunca aquela senhora que várias pragas nos rogou, a nós que no desempenho da nossa atividade, ali estávamos a empatar-lhe a vida, a ela que tanto lhe fazia almoçar ao meio-dia como às duas da tarde. Depois de estabelecido o diálogo, por entre conversas e confissões, acabou por nos convidar a irmos comer qualquer coisa a sua casa, uma vez que estar tanto tempo sem comer fazia-nos mal. Percebemos de imediato que o que a tocou foi o facto de ter entrado no conhecimento que ali estávamos duas semanas seguidas, sem o carinho e o conforto dos nossos lares e até, no meu caso, longe da minha bebé. As Alentejanas são assim! Inicialmente fechadas e até um pouco desconfiadas, para logo depois abrirem os seus enormes corações de mulheres e mães grandiosas.  

Como esquecer aquele dia em que, já o sol se punha no horizonte e eu ainda em Estremoz, conheci o Sr. José d’Alter, emblema do Estremoz de então. Ali fiquei, no seu estabelecimento, umas horas a ouvir as suas histórias, como aquela do cavalo, com o militar de montada, que entrou na sua loja e foi beber ao balcão. Nesse dia, comeu-se, bebeu-se e ouviram-se fados. Ao final da noite, eu era já o amigo Rafael e isso deu-me o privilégio de trazer para casa uma cassete com fados interpretados pelo anfitrião, devidamente assinalada com uma dedicatória escrita. Ainda hoje a guardo religiosamente como importante troféu da minha vida.

Do Alentejo também me ficou o sentido de oportunidade, a piada malandra mas inteligente, a sensualidade… como naquele dia em que conheci num consultório médico uma senhora muito bonita, elegante, atraente de verdade, já na casa dos quarenta anos, o que para mim, naquela altura era uma diferença de idade significativa. Sabendo eu de quem se tratava, uma vez que ia recomendado por um colega, apresentei-me, proferindo o seu nome e certo de que se trataria da mesma pessoa. A resposta foi pronta, “sim, sou Cândida, mas só de nome…”.

O Alentejo tem disto.
Momentos que se entranham em nós. Tertúlias e tertúlias no Isaías, jantares no Sr. José Luís, de vez em quando lanches na “ourivesaria” do Sr. Amor, mais conhecida por Restaurante Fialho. Viagens de fim de dia, a ouvir música clássica através das searas douradas, interrompidas por pontos em tons verde-escuro.
Transporto pois comigo os paladares, os cheiros e as cores do Alentejo, patentes em algumas obras minhas. Aguarelas das planícies, poemas sobre as gentes. Sinto hoje que a minha vida é uma preparação para o que aí vem. Quem sabe, um dia mudo-me para lá (!?...)

Quis ainda o destino que, ao longo da minha vida, tivesse vivido com duas alentejanas, dando-me a oportunidade de assim conhecer e partilhar a grandiosidade e generosidade das gentes do Baixo Alentejo. Curioso que, ao longo destes anos, quando pensava, o Alto Alentejo lembrava-me os amigos e o Baixo Alentejo era, para mim, sinónimo de família…

Quilómetros e quilómetros a bordo do Fiat Uno sem ar condicionado, quilómetros e quilómetros à boleia num Smart. A certeza de bons momentos passados à volta da mesa e o aconchego que só os sentimentos nobres, existentes entre pessoas que se gostam, permitem.

Faz hoje quase 24 anos que o Alentejo entrou em mim.

Ao fim deste tempo todo, estou a regressar a casa, depois de dois dias passados em Évora, na casa dos meus amigos Vinagre, o Miguel, a Isabel e o Tomás.
Regresso tranquilo e cheio, como de todas as vezes que regressei do Alentejo. 
Vim de Évora, capital do Alto Alentejo, o que, como já disse foi sempre sinónimo de amizade, como foi de família quando há pouco referi do Baixo Alentejo. 
O que importa? Talvez se confundam, talvez esse conceito exista só na minha cabeça. O que vale mesmo são as pessoas e essas estão cá dentro todas misturadas, as que conheci no Alentejo e as que conheci noutros lugares, amigos e família.
Foram dois dias em grande, a condizer com a nossa ligação. Ficou a promessa de voltar. De mota ou de carro, de comboio ou camioneta, ou mesmo de vespa, voltarei à mesma velocidade, a velocidade que o meu coração exige quando se tratam pessoas de quem eu gosto e que gostam de mim, sejam elas amigas ou família.

Se calhar, volto já para a semana…

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terça-feira, 23 de julho de 2013

O céu como destino

Para sempre vão-se amar
Aqueles que não se entendem
Cá na terra hão-de penar
Até que deles se lembrem

Pois não há maior sofrer
Que amar e só por castigo
Não poderem se entender
Vivendo um amor amigo

Talvez esteja destinado
Por Deus que não os quer ver juntos
Cá na terra lado a lado

Um lugar no céu marcado
Para inveja de muitos
Bem juntinhos ao Seu lado

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Pintar poesia sobre o Tejo

Ser poeta ou ser pintor
Venha o diabo e faça a escolha
Os dois usam uma folha
E a poesia também tem cor

Já isso de desejar ser
Os dois numa só pessoa
Não é impossível ver
O poeta a pintar Lisboa

Se o pintor na sua tela
Faz poesia ao desenhar
Põe rimas num barco à vela

Sobre a água como um beijo
Já o poeta a versejar
Dilui as cores sobre o Tejo…

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domingo, 21 de julho de 2013

Caminho de Ferro (Alentejo)

Aguarela s/ papel - 2013

Embrião (Lisboa)

Aguarela s/ papel - 2013

Seara (Alentejo)

Aguarela s/ papel - 2013

Feira do Livro - Sesimbra - de 19 julho a 18 agosto





Desamor

Falava há dias em sonhos
Este eu nunca te contei…
Daquela vez em que no meu quarto
Do meu corpo me separei

Elevei-me até ao teto e contemplei-o em paz
Ali estava ele, olhos vazios, deitado sobre a cama
Abandonado à espera de uma decisão
Observei-o do alto, lá do canto do teto
A imagem do abandono, majestosa tristeza…
Apenas forma e carne deixadas no leito
Naquele leito onde tantas vezes nos amámos juntos
Eu e o meu corpo, tu e os nossos sonhos
No leito onde tantas vezes nos inventámos
Onde, meu amor, um dia me juraste para sempre
E onde até algum tempo atrás te esperei…

Procuro-te hoje 
Revejo as marcas que deixaste no meu corpo
Tatuagens de ti que hoje não valem para nada…
Só o raio do abandono…
Apenas a vida abandonada…

Resta-me o espaço que ocupo e a recordação que trago de ti…
A tristeza e a agonia adormecidas numa cama de amor inventada
Resta-me  a morte premeditada…
E o que fazer com este torpor!?
Deverei pegar no meu corpo e viver?
Ou simplesmente desistir, continuar a planar até morrer!?

Quero olhar só mais uma vez
Questionar-me e tentar compreender
Este desapego que me entristece e ao mesmo tempo me anima
Então, pegar no meu corpo e devolver-lhe a vida!
Voltar a vesti-lo, tocar-lhe ao de leve a pele
Mostrar-lhe que apenas eu dependo dele
Que o desapego é sofrido e real
Já que corpo e alma seguirão unidos
E que às vezes o desamor não faz nenhum mal…

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sexta-feira, 19 de julho de 2013

Karma mix

Bem queria escrever mas não sai
Moléstia, mataste o meu dia
Tristeza que a noite já cai
Sem versos, nem canto ou poesia

E as cinzas que dele me restam
Não são muito mais do que lágrimas
Perdidas, esquecidas, não prestam
Prolongam p’ra sempre os meus karmas

Por fim, ironia, que é tarde
Lá nasce com medo a poesia
Cinzenta no fundo do cinzeiro

Num mix tão intenso que arde
Com as rimas e a angústia do dia
Num fogo, tamanho braseiro


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Sentado na "A Brasileira", no Chiado...


Faz tempo que não desenhava nos cafés... 
Ca10EsGa3Ci2Ga-PeGa7, pode tornar-se num vício...






quinta-feira, 18 de julho de 2013

REGRESSO a MIM - Aguarelas e Poesia - Teatro Rápido (Chiado) - de 01 a 29 julho

REGRESSO a MIM é o resultado de anos a fio a viajar.

Nessas viagens, fui de Lisboa a Paris, do Alentejo até à Lua… observei e refleti.
Bebi lugares, provei gentes, viajei ao largo mas nunca me afastei. Poucas vezes ancorei.

REGRESSO a MIM é como que um reencontro, com a vida, os amigos, a cor e as palavras, pensamentos, imagens e sentimentos que me assolam.

Quem não conheceu mundo de sobra sem sequer se ter conhecido a si mesmo!?
Quem nunca tentou encontrar-se viajando para longe de si!?
Somos todos tão iguais e ao mesmo tempo tão diferentes na forma como tentamos descobrir-nos.

Hoje, a pintura e a escrita são a minha identidade e é através destas que me quero revelar, agora que me encontrei.
Cansei-me de viagens… A poesia lava-me a alma e as aguarelas matam-me a sede.

REGRESSO a MIM tem uma leitura simples… agora que me encontrei, estou preparado para viajar por mim.

Tomo balanço no aparo e flutuo na água, sobre o papel…

Estão todos convidados a entrar nesta viagem.  


REGRESSO a MIM - Teatro Rápido - julho 2013 (Making of)

Domingo, 30/06, foi dia de montar a exposição.
Curioso… 15 dias de intervalo entre o final de uma e o começo de outra, contrastando com o intervalo de tempo existente entre a penúltima e a última exposição, quase 15 anos...
Os dias de lazer são agora em menor número, quero eu dizer que aquela forma de estar, quase irresponsável, desvalorizando o tempo que passa na certeza de que um dia seremos felizes, acabou. Deixou de haver tempo a perder.
Aquela coisa de deixar para amanhã aquilo que bem podemos fazer hoje, o livro que não se leu, o filme que não se viu, é música de ouvido… Não posso ficar por aqui.
Enquanto decorre REGRESSO a MIM, no Teatro Rápido – TR Bar, nova mostra de trabalhos, desta vez na Feira do Livro, em Sesimbra, de 16 de julho a 19 de agosto.
Entre encontros e desencontros vamos caminhando. Entre convites e novos desafios vamo-nos oxigenando. Entre riscos e letras vamo-nos descobrindo e divertindo. Entre cores e emoções vamo-nos revelando. Por entre a subjetividade do tempo, marcada por ruídos e silêncios vamos morrendo…














Marcas d'Água - Sesimbra - junho 2013

Marcas d’Água são cunhos dóceis de lugares visitados e de momentos vividos ao longo da vida.
São também memórias que não se querem esquecer, mas sim perpetuar, enquanto os anos passam e o corpo e a alma vão secando.
Marcas d’Água são sentimentos, estados de espírito, momentos de interiorização, só possíveis porque estão associados ao amor, à amizade, à saudade e a alguma criatividade.
A Água, reguladora de temperatura, substância diluidora e transportadora de nutrientes vitais para o nosso organismo, interfere no seu funcionamento e confere-nos vida.
A Água deixa as suas marcas, com ou sem cor, no papel, nos olhos que o observam, ou simplesmente nos corações que batem a ritmo.

Mais não seja, porque a água mata-nos a sede…















Crónica de uma greve não anunciada

Levantei-me hoje tranquilo, bem-disposto até, aliás, como quase todos os dias acontece, não fosse o momento de preocupação e angústia que estamos a viver por causa da saúde do meu pai.
Posso deitar-me cansado, chateado, frustrado que isso não é problema. Quando o dia começa e a persiana do quarto sobe, trata-se de um novo dia para viver.
Como sempre, roupas da cama para trás, janela aberta enquanto tomo duche, ao mesmo tempo que Norah Jones, Incognito e Diana Krall passavam na Smooth FM.
Hoje decidi desfazer a barba de três dias e as calças de ganga rotas e coçadas deram lugar a outras mais “apresentáveis”. A t-shirt esgaçada, foi trocada por um polo preto e em vez das botas, apesar do calor, um sapatinho nobuck mais de acordo com a ocasião.
No final, um perfumezinho suave para não enjoar a interlocutora.
Vá lá saber-se porquê, mas nestas alturas lembro-me sempre da minha mãe que, embora tenha aceitado sempre os meus devaneios, na hora de avaliar a nossa apresentação, dava sempre a sua opinião, normalmente assertiva. Reconheço-o hoje e que saudades tenho de a ouvir.
Cama feita antes de sair de casa, pego na pasta e no saco, com três quadros para amostra, preparados de véspera (Entenda-se véspera, algumas horas antes, uma vez que, como diz a minha amiga Né, nós somos da espécie que nunca diz até amanhã quando nos vamos deitar, porque já passa sempre da meia-noite. Até logo, portanto…) e saio rumo à Câmara Municipal de Alcochete, não sem antes passar na pastelaria D. Manuel, na Atalaia, para comprar pão fresco, de Sesimbra ou da Lagoinha, de preferência. A minha filha gosta e eu aproveito-me da causa. Os pequenos-almoços cá em casa voltaram a ser prática comum.
Desta vez, os 8,8 Km que separam a Atalaia de Alcochete fizeram-me lembrar o trajeto percorrido por alguém que vai fazer um exame. A vereadora da Cultura estaria à minha espera para termos uma reunião agendada há quase um mês. Revi todo o meu discurso, elaborei respostas a questões novas que poderiam surgir e reavaliei cada um dos meus slides relativos ao meu portfólio. Tudo bem, pensei.
Alcochete é uma vila encantadora a qualquer hora do dia mas, de manhã, guarda ainda aquela tipicidade das vilas piscatórias, salineiras, bem portuguesas, em que o desejar bom dia é prática comum entre pessoas que se cruzam.
Com a pasta em pele a tiracolo, que me foi oferecida por alguém muito especial e um saco de transportar molduras, cuidadosamente escolhido há dias, contendo três trabalhos meus, foi assim que saí do carro, depois de bem estacionado, à sombra.
A caminho da Câmara não pude deixar de sorrir para mim mesmo e lembrar os burros ajaezados até mais não, fazendo pela vida.
O movimento no largo da Câmara era anormal. Muita gente à porta, a fumar (!?...). Entrei…
No átrio a mesma exposição de há semanas. Pensei, devem mantê-las por um mês (!?...)
Dirigi-me à senhora que se encontrava na recepção, que tranquilamente falava ao telefone. Verdade que interrompeu a conversa para me atender. Sem que eu dissesse nada, retorquiu simpaticamente, “Estamos em greve!”…
Sou a favor das greves! Sou a favor dos direitos dos trabalhadores! A greve é realmente a grande arma de luta dos trabalhadores.
Não quero transformar este texto num manifesto político.
Fico-me pelo respeito que tenho por todos aqueles que vivem dias difíceis e lutam por melhores condições de vida. Também eu, estou a sentir na pele os dias duros que se vivem, depois de mais de trinta anos de trabalho.
Muito menos quero transformar este texto num rosário de penas, mas o respeito por esses, é o mesmo respeito que não senti hoje para comigo.
Nos anos que levo de trabalho, considerei sempre o próximo. Tive sempre o cuidado de consultar a minha agenda e, sempre que necessário foi alterar algum compromisso, por uma questão de princípios, fi-lo por iniciativa própria. A ideia de poder estar a prejudicar, ou simplesmente não respeitar o trabalho e o tempo de alguém, só por si, perturba-me, como perturbado fiquei por ver aquela gente à porta a fumar, enquanto aquela simpática senhora na recepção, desfazendo-se em desculpas, tentava perceber ao que eu ia. A imagem que guardarei é a de “guardiã do templo” (Não sei se no interior havia gente que não aderiu à greve!? A vereadora da cultura sim, definitivamente).
Por fim a simpática senhora lá entendeu que eu era um “fornecedor de serviços para exposições” (!?...)
E assim vamos andando… Um departamento da cultura que desrespeita os cidadãos, trata mal os “artistas” e que nem sequer explica à recepcionista da Câmara que um “fornecedor de serviços para exposições” é um simples “artista” e que é esta “raça” que justifica a existência de tais departamentos.
Sem qualquer ressentimento, mas chateado, voltarei amanhã para reagendar a referida reunião, não sem antes procurar consultar o “planeamento de greves” para os próximos tempos.
Quando saí a porta da Câmara Municipal de Alcochete, ao ver o grupo de fumadores, não pude deixar de pensar que, pelo menos, esta greve contribuirá para um aumento significativo do consumo de tabaco. Não quero com isto dizer que haja um aproveitamento político da situação e que se passe a imprimir nos maços de tabaco, “Cuidado, fazer greve pode matar!”
Matar não mata, mas mói.
No regresso ao carro, senti-me, aí sim, um verdadeiro burro ajaezado à Andaluza!...
Vim para casa e preparo-me para comer o pão da Lagoinha e de Sesimbra com a minha filha.

Ai Laura, Laura, o que te espera… 

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Dote

A vida não se esgota num corpo que parte
Uma caixa de madeira não guarda o tesouro de toda uma vida
A dor resultante da ausência de quem parte nem sempre reflete
O valor da vida nem o amor espalhado através do breve passar dos anos
O tempo e o natural esquecimento são deveras cruéis
Resgatando sem dó o que de mais puro e íntimo temos
A recordação e a liberdade de pensarmos

Não a mim…
Enquanto for vivo as memórias ficarão comigo e jamais as deixarei fugir
Guardá-las-ei em mim atadas ao meu sono tranquilo para poder sonhar com elas
Trá-las-ei comigo presas às minhas pernas
Pois serão elas as molas do meu andar
Mas não as levarei comigo porque uma caixa de madeira não chegará para as guardar
Muito menos o meu corpo fétido merecerá tal dote

… /…

Nós, as pessoas...

Às vezes tropeçamos em pessoas
Às vezes simpatizamos com as pessoas nas quais tropeçamos
Outras vezes não simpatizamos
Às vezes simplesmente julgamos que simpatizamos com as pessoas nas quais tropeçamos
Outras vezes achamos que não simpatizamos com essas pessoas
E às vezes não simpatizamos mesmo
Nem com as pessoas com as quais julgamos que simpatizamos
Muito menos com aquelas nas quais tropeçamos
Pessoas há que gostam de mostrar que gostam das pessoas com as quais não simpatizam mesmo

Às vezes conhecemos pessoas
Às vezes gostamos das pessoas que conhecemos
Outras vezes não gostamos
Às vezes simplesmente julgamos que gostamos das pessoas que afinal não conhecemos
Outras vezes achamos que não gostamos das pessoas que conhecemos
E às vezes não gostamos mesmo
Nem das pessoas que julgamos que gostamos
Muito menos daquelas que conhecemos realmente
Pessoas há que gostam de mostrar que gostam das pessoas de quem não gostam mesmo

Às vezes gostamos de pessoas
Às vezes conhecemos as pessoas de quem gostamos
Outras vezes não conhecemos
Às vezes simplesmente julgamos que conhecemos as pessoas de quem afinal não gostamos
Outras vezes achamos que não conhecemos as pessoas de quem gostamos
E às vezes não conhecemos mesmo
Nem as pessoas que julgamos que não conhecemos
Muito menos aquelas de quem gostamos realmente
Pessoas há que gostam de mostrar que conhecem pessoas que afinal não conhecem mesmo

Às vezes esquecemo-nos de nós
Às vezes pensamos em nós e esquecemo-nos
Outras vezes não pensamos
Às vezes simplesmente julgamos que pensamos em nós e que disso nunca nos esquecemos
Outras vezes achamos que não pensamos em nós e que por isso esquecemo-nos de nós
E às vezes não pensamos mesmo
Em nós de quem julgamos que nunca pensamos
E muito menos em nós de quem nos esquecemos realmente
Muitos de nós gostamos de mostrar que pensamos em nós sem nunca pensarmos mesmo

…/…