sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sete anos de espera

Aos domingos, por volta do meio-dia e meia, apanhávamos o meu pai na casa de repouso, morada onde passou os últimos sete anos da sua vida.
Foi para lá, por vontade sua, seis meses depois do acidente que debilitou a minha mãe, em abril de 2006, o qual fez com que não voltasse a casa, desde então.
As passagens pelo Hospital de S. José, pela Casa de Saúde da Idanha e, por fim, pela Casa de Repouso Nossa Senhora Rainha dos Anjos, em Loures, foram o seu calvário, antes de encontrar o descanso merecido, em dezembro de 2006.
Desta forma, ainda em vida da minha mãe, o meu pai juntou-se-lhe neste local e, durante dois meses, puderam partilhar a companhia um do outro, olhando-se e tocando-se, vivendo momentos de ternura, os quais só eles puderam sentir e avaliar o quanto importantes foram, após sessenta anos de caminho percorrido lado a lado.
A minha mãe, fortemente debilitada e mais perto da partida, impossibilitada de falar, fazia-nos querer acreditar que sentia o carinho que a rodeava e, mesmo assim, naquele estado que nos fazia sangrar cá por dentro, continuava a ser quem nos transmitia a força, através do amor que só ela tinha para distribuir, ainda que em sofrimento.
Nunca soubemos o que se passava no seu interior e, ao fim de sete anos, é a única angústia que transporto e que, provavelmente, morrerá comigo.
Aqueles dois meses foram muito importantes para os dois…
Desde abril que o meu pai recusava, em silêncio, rever a minha mãe, dado o estado débil e de sofrimento em que se encontrava.
Por outro lado, percebia-se que a sua recusa estranha não era mais do que a renúncia do seu ego em aceitar que a sua companheira não era mais a sua âncora sólida e firme que tinha sido toda a vida e à qual ele tantas vezes se agarrou.
Momentos tristes aqueles em que, de um momento para o outro, vemos os nossos pais mergulharem num limbo de inseguranças, medos, fragilidades e dependências.
Para um homem que partilhou durante seis décadas a sua vida ao lado daquela mulher que tanto amou, vê-la ali deitada, presa ao seu corpo, privada da sua autonomia, a sofrer, foi certamente um golpe duro, para si também.
A minha mãe, estou certo, ambicionou o momento do reencontro.
Sem conseguir falar, apenas emitindo sons tocando a língua no céu da boca, de encontro aos dentes, ficava agitada quando falávamos do meu pai. Ouvia-nos atentamente, com o olhar esforçadamente fixo, ao mesmo tempo distante, com as pupilas dilatadas, enquanto lhe transmitíamos que ele se encontrava bem, amparado, bem tratado e que, um daqueles dias, viria visitá-la. Aí, ela tranquilizava, os seus olhos brilhavam, as pupilas contraíam e a calma reinava de novo.
A minha mãe descansou a 6 de dezembro de 2006, só depois de nos sentir aos três, a mim, ao meu irmão e ao nosso pai, mais resignados, mais tranquilos e reencaminhados nos nossos novos registos de vida. O nosso pai mais acompanhado, já na casa de repouso. Eu, com a situação da instabilidade profissional que vivi ao longo de um ano, devido à compra da empresa onde trabalhava e consequente reestruturação, culminando com a minha saída, depois de meses de pressão e consequente negociação, à qual prestei pouca atenção. Por último, o meu irmão, ultrapassado que foi um momento importante da sua vida emocional e afetiva.
Aquele dia marcou para sempre as nossas vidas e o despertar, a partir de então, nunca mais foi o mesmo.
A nossa mãe foi e será sempre a nossa bandeira.
Os sete anos que se seguiram aproximaram-nos muito do nosso pai. Visitávamos-lo várias vezes durante a semana e os domingos foram quase todos eles sinónimos de reencontro e partilha, em família.
A nossa mãe, embora ausente, sentou-se sempre à mesa connosco.
O nosso pai partiu em julho último.
Ele será para sempre o nosso porta-estandarte.
As memórias são hoje doces e tranquilas e estamos certos que, onde quer que estejam, estão juntos e que estes últimos sete meses têm sido aproveitados para compensarem os sete anos de espera um pelo outro.

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