sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Em nome da São

Segunda-feira, 04 de Outubro de 1971, o dia em que tudo começou.
A minha primeira escola foi o Externato Cesário Verde, em Moscavide.
Recordo o primeiro dia de escola como se fosse hoje.
A minha mãe e o meu pai, desde o final do verão, que estavam ansiosos pelo novo ritmo que, a partir desse dia, passaria a fazer parte do quotidiano lá de casa. A minha mãe, por exemplo, passou a levantar-se todos os dias muito antes de toda a gente para nos cozinhar o almoço, que levaríamos, dentro dos termos, para a escola. Preferia que assim fosse e ficava feliz por podermos dispor de comida confeccionada no mesmo dia.
Na verdade, a escolha da escola tinha sido meticulosamente analisada e a decisão tomada transportava o sonho de verem crescer os seus filhos num ambiente de saudável aprendizagem e fé convicta de que aquela escola ajudaria a formar e a transformar os seus meninos em rapazes saudáveis e futuros homens de corpo inteiro.
Para tal, não só era importante a qualidade do ensino ali praticado, como o ambiente reinante, a dimensão humana dos professores, o rigor, a disciplina e a diversidade de atividades extracurriculares, garante da satisfação de todos.
O meu irmão vinha de uma experiência, de certa forma, traumatizante, após três anos de escola com uma professora esquizofrénica, que tratava mal a criançada.
Entrar na nova realidade foi, para o Nuno, quase como que ter iniciado a escola de novo.
O Nuno entrou para a terceira classe e teve como primeira professora a Dna. Alice, que mais tarde foi minha professora também.
Já eu, a primeira professora que tive, foi a São, como era conhecida e chamada por todos. Foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido, a todos nós que debutávamos na primeira classe.
Aquela segunda-feira marcou para sempre a minha vida!
Nunca, até então, que me lembre, tinha passado um dia inteiro, tão longe da minha mãe, num ambiente tão estranho, para mim.
Senti a angústia da separação, logo pela manhã, quando a carrinha da escola fez a manobra, em frente à nossa casa, parou e lá de dentro saiu uma senhora, já com uma certa idade, a Dna. Francisca, avó do João Castelo, meu futuro colega de classe. A Dna. Francisca despediu-se pouco tempo depois da sua atividade de anos, dando lugar à Dna. Amélia.
A ideia de ir para a escola até que me seduzia. Queria aprender mais, uma vez que escrever o meu nome, fazer algumas contas e ler os títulos dos jornais, eram tarefas que fui fazendo a partir dos quatro anos de idade. Desde então, eu, o meu irmão e a Ilda, brincávamos aos médicos e eles, que já andavam na escola, insistiam em escrever as receitas, sendo que eu, mais pequeno, embirrei que aprenderia a fazê-lo, a fim de os poder acompanhar na seriedade das brincadeiras e, assim aconteceu.
A escola provocava, na verdade, um encantamento em mim.
Aprender, fazer novos amigos, conhecer a minha professora, começou por me tirar o sono dias antes e deixou-me ansioso, ao ponto de descurar o problema da separação e, na hora H, fui apanhado de surpresa.
Os meus braços não queriam separar-se dos da minha mãe e aquele foi um dos momentos mais angustiantes da minha vida.
Valeu o meu irmão que, durante as primeiras semanas de escola, me protegia oferecendo-me o seu abraço, apertando-me contra si, encostando a minha cabeça no seu ombro, fazendo-me sentir aconchegado e seguro, enquanto a carrinha completava o seu itenerário de recolha dos outros meninos e meninas, antes de, finalmente, rumar ao seu destino, a escola.
No Externato Cesário Verde, em Moscavide, fui feliz durante os anos todos em que lá andei e o primeiro ano com a São foi o mote para os anos que se seguiram.
Com a São ganhei o gosto pela escrita. As redações eram momentos únicos que nos obrigavam a pensar, a sonhar e a sentir. Os desenhos fizeram parte dos dois anos que passei na sala de aula com a São e todos os meus colegas, o Amílcar, o Paulo Fernandes, o Jorge Monteiro, o Crisóstomo, o Rui e o Alexandre Flores, o Gaspar, o Armando, o Paulo de Carvalho, o Fernando, o Jójó, o Hélder e tantos, tantos outros…
Sim foram dois anos, não que tenha reprovado na primeira classe, apenas porque a São transitou connosco para a segunda classe. Mudámos de sala, embora nos tenhamos mantido no primeiro andar do edifício, por troca com a Dna. Zezinha, que nesse ano deu aulas à primeira classe.
Na sala da São, fazíamos muitos trabalhos manuais e dávamos azo à nossa imaginação.
O ambiente era muito bom e a São, embora usasse uns óculos grandes, como era moda nos anos setenta, que lhe escondiam um pouco o olhar, transmitia-nos serenidade, carinho e amor, através da sua voz forte, segura, por vezes com um sotaque alentejano que, recordo, de vez em quando a denunciava, especialmente quando proferia palavras tais como “comigo”, abrindo um pouco o som da primeira sílaba.
Com a São aprendemos muito mais do que escrever, ler e contar.
Falávamos muito na sala de aula, sobre os mais diversos temas.
Um de cada vez, é certo, porque também aprendíamos o que era a disciplina, bem como saber ouvir os outros. Sempre que queríamos falar, colocávamos o dedo no ar e esperávamos a nossa vez, ou ordem para avançar. Todos tinham direito a falar e o medo de intervir não existia.
Gostávamos uns dos outros e confiávamos na nossa professora, que fomentava conversas, com as quais todos aprendíamos.
Um dia, falava-se na sala de um tema que entusiasmou toda a gente, o da saúde e a São foi colocando perguntas, às quais todos reagiam, na tentativa de reponderem primeiro do que os outros. Tal qual um jogo, em que a destreza é importante, quem pusesse mais depressa o dedo no ar era quem normalmente respondia, a não ser que, alguém menos interventivo o fizesse e aí, a São optava por lhe dar a palavra.
Foi então que a São perguntou:
- E como é que se chama àquele senhor que vai a casa das pessoas dar injeções ou fazer tratamentos? Humm?... – e ficou à espera da resposta fácil, com toda a gente a colocar o dedo no ar, quase que todos ao mesmo tempo.
Eu alinhei no gesto, no meio da euforia.
Perante tal cenário, a São decidiu democraticamente e deu a palavra à turma toda, que gritou em uníssono:
É o Sr. Enfermeiro!!! – berraram todos, baixando os braços, em seguida.
Todos, menos um…
Momento estranho aquele!... Toda a classe tinha respondido igual e, pelos vistos, estava certo. Só eu não estava tão certo disso!…
Eu mantinha o braço no ar, não convencido que a resposta estivesse efetivamente errada, mas ao mesmo tempo achando que poderia ter algo de novo a revelar à turma, mais não fosse uma outra forma de dar um outro nome a tão nobre profissão…
A São foi a primeira a perceber que eu estava confuso, talvez pela minha expressão facial, talvez porque o meu braço insistia em fazer de antena.
- Parece que o João tem alguma coisa para nos dizer!?... – disse a São e ficou à espera.
Toda a turma olhou, os meninos da frente viraram as cabeças para trás e eu senti-me importante. O que ia dizer a seguir poderia ser algo de novo e útil para todos…
Baixei o braço, respirei fundo e afirmei, por forma a todos ouvirem:
- Eu cá, chamo Sr. Pacheco!?...
Nesse momento fez-se silêncio para, de imediato ecoar na sala uma gargalhada geral.
A São sorriu e percebeu o meu ponto de vista. Apoiou-me, como apoiava todos os meninos e assim nos ajudou a crescer.
Aquele episódio representa, para mim, um dos momentos mais ternos passados na minha sala de aula e jamais o esquecerei, porque assim, através daquele modo tão tranquilo de lidar com o absurdo, cedo me apercebi que mostrar o nosso desconhecimento e a franqueza com que lidamos com a ignorância, não nos deve envergonhar nunca e que a solidariedade e o suporte dado a quem quer aprender pode conter, na mesma, a gargalhada sincera, sem espaço para qualquer maldade, no simples ato de achar graça.
Nesse dia, a São transmitiu-me mais do pude alguma vez imaginar e o episódio vivido faz com que, ainda hoje, não baixe o braço na hora de mostrar o meu desconhecimento, descontentamento, ou simplesmente na hora de questionar as minhas dúvidas.
Graças à São, recordo hoje quase todos os meus colegas da primeira e segunda classes, tão só, porque todos tivemos direito à nossa identidade individual, ao mesmo tempo que funcionávamos como grupo e, dessa forma, foi possível ganharmos o nosso espaço naquela sala de aula, projetado, mais tarde, nas nossas vidas.
Um beijinho, São!

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