sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Sete anos de espera

Aos domingos, por volta do meio-dia e meia, apanhávamos o meu pai na casa de repouso, morada onde passou os últimos sete anos da sua vida.
Foi para lá, por vontade sua, seis meses depois do acidente que debilitou a minha mãe, em abril de 2006, o qual fez com que não voltasse a casa, desde então.
As passagens pelo Hospital de S. José, pela Casa de Saúde da Idanha e, por fim, pela Casa de Repouso Nossa Senhora Rainha dos Anjos, em Loures, foram o seu calvário, antes de encontrar o descanso merecido, em dezembro de 2006.
Desta forma, ainda em vida da minha mãe, o meu pai juntou-se-lhe neste local e, durante dois meses, puderam partilhar a companhia um do outro, olhando-se e tocando-se, vivendo momentos de ternura, os quais só eles puderam sentir e avaliar o quanto importantes foram, após sessenta anos de caminho percorrido lado a lado.
A minha mãe, fortemente debilitada e mais perto da partida, impossibilitada de falar, fazia-nos querer acreditar que sentia o carinho que a rodeava e, mesmo assim, naquele estado que nos fazia sangrar cá por dentro, continuava a ser quem nos transmitia a força, através do amor que só ela tinha para distribuir, ainda que em sofrimento.
Nunca soubemos o que se passava no seu interior e, ao fim de sete anos, é a única angústia que transporto e que, provavelmente, morrerá comigo.
Aqueles dois meses foram muito importantes para os dois…
Desde abril que o meu pai recusava, em silêncio, rever a minha mãe, dado o estado débil e de sofrimento em que se encontrava.
Por outro lado, percebia-se que a sua recusa estranha não era mais do que a renúncia do seu ego em aceitar que a sua companheira não era mais a sua âncora sólida e firme que tinha sido toda a vida e à qual ele tantas vezes se agarrou.
Momentos tristes aqueles em que, de um momento para o outro, vemos os nossos pais mergulharem num limbo de inseguranças, medos, fragilidades e dependências.
Para um homem que partilhou durante seis décadas a sua vida ao lado daquela mulher que tanto amou, vê-la ali deitada, presa ao seu corpo, privada da sua autonomia, a sofrer, foi certamente um golpe duro, para si também.
A minha mãe, estou certo, ambicionou o momento do reencontro.
Sem conseguir falar, apenas emitindo sons tocando a língua no céu da boca, de encontro aos dentes, ficava agitada quando falávamos do meu pai. Ouvia-nos atentamente, com o olhar esforçadamente fixo, ao mesmo tempo distante, com as pupilas dilatadas, enquanto lhe transmitíamos que ele se encontrava bem, amparado, bem tratado e que, um daqueles dias, viria visitá-la. Aí, ela tranquilizava, os seus olhos brilhavam, as pupilas contraíam e a calma reinava de novo.
A minha mãe descansou a 6 de dezembro de 2006, só depois de nos sentir aos três, a mim, ao meu irmão e ao nosso pai, mais resignados, mais tranquilos e reencaminhados nos nossos novos registos de vida. O nosso pai mais acompanhado, já na casa de repouso. Eu, com a situação da instabilidade profissional que vivi ao longo de um ano, devido à compra da empresa onde trabalhava e consequente reestruturação, culminando com a minha saída, depois de meses de pressão e consequente negociação, à qual prestei pouca atenção. Por último, o meu irmão, ultrapassado que foi um momento importante da sua vida emocional e afetiva.
Aquele dia marcou para sempre as nossas vidas e o despertar, a partir de então, nunca mais foi o mesmo.
A nossa mãe foi e será sempre a nossa bandeira.
Os sete anos que se seguiram aproximaram-nos muito do nosso pai. Visitávamos-lo várias vezes durante a semana e os domingos foram quase todos eles sinónimos de reencontro e partilha, em família.
A nossa mãe, embora ausente, sentou-se sempre à mesa connosco.
O nosso pai partiu em julho último.
Ele será para sempre o nosso porta-estandarte.
As memórias são hoje doces e tranquilas e estamos certos que, onde quer que estejam, estão juntos e que estes últimos sete meses têm sido aproveitados para compensarem os sete anos de espera um pelo outro.

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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Confusão no bairro

Passou-se hoje no meu bairro
Um passarinho caiu morto no meu terraço
Ao mesmo tempo que a vizinha da frente bateu com o carro
Enquanto o tirava de traseira da garagem
Altura em que a testemunha de Jeová tocava ao seu portão
Água quente, no banho!?...
Hoje foi uma miragem…
Gelado até aos ossos, rijo que nem aço
Esgueirei-me para fora da banheira
Eis senão… que situação
Escorreguei, dei um trambolhão
E bati com a cabeça na sanita
Não foi que a gata do lado se aproveitou da minha ausência
Correu para o terraço sem a minha licença
E comeu o passarinho caído no chão!?
Que outra expressão para desabafo, pois então
Ganda cena, que nojeira!
Enquanto a vizinha histérica grita
Levanto-me, bato novamente com a cabeça na sanita
Fico zonzo com tamanha chinfrineira
Chama a vizinha pelo marido que ainda dorme
É tanta a gritaria que acorda o bairro em sobressalto
A testemunha de Jeová foge assustada
A gata dá três pinotes e sai desalvorada
Água quente, essa foi mentira
No bairro hoje ninguém tomou banho
Ficou toda a gente transtornada
E como se não bastasse o transtorno tamanho
P’ra ajudar, até um camião que transportava porcos
Que bem cedo partira de Porto Alto
Capotou e espalhou os bichos pelo asfalto
Aí sim, a confusão foi total!...
A porcaria ficou toda espalhada
O bairro cheirava a merda esparramada
E a balbúrdia então foi tal
Que a vizinha de tanto gritar ficou rouca
A gata assustada arranhou-a feita louca
E a mim ainda me dói a cabeça da pancada…

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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Casas com vida

Montamos e desmontamos a vida como quem muda de casa.
Primeiro é o encanto, a descoberta do local certo, depois a afeição e a busca da comodidade, mais tarde a tranquilidade, os dias que correm e a vida que se cumpre, seguem-se os primeiros sinais de desconforto que iniciam o processo de desejo de nova mudança, seguidos de um novo entusiasmo, mais as circunstâncias da vida que nos obrigam e ou ajudam a tomar uma decisão. E a mudança dá-se mais uma vez.
Repetimo-la vezes e vezes, quase sempre convictos que o passo tomado é o certo.
Se de cada vez que o fazemos, for essa mudança para melhor, mais acolhedor o espaço, mais bonito e aprazível o local, vivemos felizes e ficamos de bem com o mundo e, sobretudo, connosco próprios.
Acontece que, como em tudo na vida, nada pode ser visto isolado do todo.
Mais a mais quando, como é o caso, falamos de espaços, onde circulamos envoltos em pensamentos, recordações, afetos, medos, onde tomamos decisões, comemoramos, entristecemos e tudo o mais pelo que passamos e vivemos durante as nossas vidas.
A nossa casa é a nossa família, são os nossos amigos, todos quantos atravessam a porta da entrada e partilham o que mais de nosso existe. A nossa casa são também todos aqueles que já partiram, mas que ocuparam e ocupam espaço…
Uma casa é um cofre recheado de bens preciosos, invisíveis é certo, que nenhuma seguradora correria o risco de assumir a cobertura em caso de vandalização, porque é impossível avaliar o montante dos bens segurados e a dimensão dos danos causados. Sejamos, pois, guardiões desses bens e guardemos em nós esse património.
Na minha casa, cada divisão é um braço do meu corpo, que me abraça a cada investida no seu interior. Cada porta que abro, deixa fugir uma gargalhada ou um choro perdido por detrás dela. Cada objecto é parte do meu coração, que bombeia emoções e histórias associadas a cada um deles. Cada odor faz parte de uma qualquer memória que me excita os receptores neurológicos e me vicia, ao ponto de colecionar cheiros desde pequeno.
De cada vez que mudo de casa tenho de levar tudo isto comigo. Só assim posso dizer que esta é a minha nova casa. Só assim me consigo sentir em minha casa, de novo.
Ainda que o espaço seja menor, nela tem de caber tanta coisa, e a cada nova mudança, vou acumulando vida.
Quando mudamos de casa, montamos e desmontamos móveis como quem monta e desmonta a própria vida.

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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Revelação

Se o mar não se zangar
E de um livro for eu a tempo de ler
Se a terra não tremer
E um poema eu souber escrever
Se a guerra não rebentar
E uma tela eu puder pintar
Se o sangue não se derramar
E o teu nome eu conseguir gritar
Se a doença não me vencer
E o teu sorriso eu tiver
Se a morte não vingar
E o tempo me deixar
Se o medo não voltar
E o amor por ti eu puder mostrar
Se o barco não virar
E nesse mar puder eu navegar
Se desta forma a vida se revelar
E tu assim o quiseres
Possa eu morrer em paz
Sabendo tu que de te amar fui capaz
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Fim

Cruzamo-nos e estendemos os braços
Mas não nos chegamos a tocar
Giramos e prosseguimos
Voltamos a cruzar-nos e chocamos
Resvalamos e seguimos
Com o corpo dobrado
Em forma de degrau
Sentados no ar
Rumamos até ao fim...
Rodopiamos e afastamo-nos
Dói cá dentro…
O impacto projeta-nos para longe
Espaço etéreo que ainda não é
Mas que a seu tempo será o nosso
Aonde?
No infinito…
Os corpos em forma de degrau
Sentados no ar
Desdobram-se agora, relaxam
O degrau alonga, vira patamar
Que se estende até se transformar
Em plataforma tranquila planando no ar
Continua a não haver chão, só ar
E os corpos seguem viagem
Noutra forma de estar
Seguem agora em rota linear
Rodopiando sobre si, em espiral
No espaço etéreo se fundem
Que é agora o nosso espaço
O bem-estar instala-se
E a ordem revela-se
Fundidos, seguimos viagem
Pelo espaço que nos devora
Já não chocamos
Incorporamos um no outro
E desaparecemos num ponto
É o fim…
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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Soltar amarras

Clicar e só depois ler
http://www.youtube.com/watch?v=vCYk9CRx0g8

Mas voltarmos a um lugar onde já fomos felizes não significa voltarmos a querer ser felizes nesse mesmo lugar!?...
Que o retorno aconteça tantas e quantas vezes o desejarmos, dando-nos, assim, a oportunidade de revisitarmos todos os instantes, momentos e histórias ali vividas, com a certeza de terem sido sinónimo de entrega sincera e partilha generosa.
O tempo oferece-nos a tranquilidade necessária para transformarmos os portos de chegada em cais de partida para novas viagens e estonteantes descobertas de felicidade…
Se o céu estiver limpo, sem nuvens ameaçadoras, o mar de feição e o vento de maré, navegar à bolina poderá tornar-se na mais bela dança para aqueles que, soltando amarras, querem navegar no futuro…

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terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Não há pachorra!

É fal-so!
É tudo falso!...
Não me perguntem porquê
Mas é tudo falso!
E chateia-me quando me perguntam porquê!...
Como se fosse obrigatório ter uma explicação para tudo e para todos
Logo então para esses que a tudo perguntam porquê!?
Porque é que é tudo falso!?…
Olha lá, logo a esses!
Resposta: Porque é tudo falso!...
Até o interesse demonstrado em saberem porque é que eu afirmo que é tudo falso…
Até isso… É falso!
E se não é falso, é mentira!
É tudo mentira!...
É tudo mentira e é tudo falso!
E insistem em fazer-me crer que não…
Que é assim!
Qual, é assim o quê!?...
É men-ti-ra!
Como?...
O quê?...
Não é mentira!?...
Não é mentira, o quê!...
Bem, então se não é mentira, é porque inventaram!...
Estão sempre a inventar coisas!...
Mentira!?... Porquê mentira!?
Porque é que não haviam de inventar!?...
Querem ver que agora o mentiroso sou eu!?...
Ah claro!... E eu é que invento!?...
Querem ver que além de ser mentiroso, agora, sou inventor também!?...
O quê?... Ainda por cima sou falso!?...
E logo vocês para me dizerem que eu sou falso!...
Logo vocês!...
Mentirosos!...
Mentirosos e falsos, é o que vocês são!...
Inventam cada coisa!...

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Fuga

À noite por detrás das nuvens lá no céu
No caminho há uma luz que te segue e acompanha
Protegendo o teu passo que a medo desenha
Um caminho trocado que não é o teu

Sob a lua que ausente há muito se escondeu
Noite de tempestade com chuva sem fim
Ao sentir-te perdida o que aconteceu?
Companheira de fuga, fugiste de mim

Ficarei eu à espera que voltes um dia
Quando o tempo disser que devemos tornar
A partilhar de novo e a viver a alegria

De ver o sol nascer como já vimos antes
Enquanto as nossas bocas que se querem beijar
Nos lábios sentirão a condição de amantes

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Tão simplesmente...

Os dias não são todos iguais, eu sei.
Muito menos os olhamos todos os dias da mesma forma, eu sei também. E ainda bem que assim é…
Hoje acordei triste, com a estranha sensação de que alguma coisa está para acontecer, apenas não sei o que é (!?...) De vez em quando acontece-me.
E, ainda deitado, deixei-me levar pelos meus pensamentos e sonhos, os mesmos que todos os dias me dão força para continuar a minha constante busca da felicidade, contra o tempo e a pouca vontade dos tempos de hoje. Só que às vezes é difícil…
Já a pé, liguei a televisão que só debitou desgraças, enquanto tomei duche, ajeitei a barba, fiz a cama e me vesti.
Fiquei ainda mais triste, ao ouvir a enxurrada de notícias más e revoltantes, alternadas com discursos redondos, enganadores, perigosos até, que nos fazem tremer e temer os tempos que aí vêm.
E assim estive, por breves minutos, a pensar na verdadeira importância das pequenas tarefas e gestos que repetimos quotidianamente, na espera de que algo de bom nos possa acontecer, sem vislumbrarmos, contudo, o quê, simplesmente na contínua espera, ou tão simplesmente, mantendo essa esperança…
Envolto nos meus pensamentos, ainda desordenados e confusos, típicos de quem começa o dia, ademais com a estranha sensação já relatada, assomei-me à janela do meu quarto e senti na face uma claridade intensa, por detrás de algumas nuvens menos densas, o que me fez fechar os olhos.
Nesse instante, senti-me pequeno e ao mesmo tempo ridículo…
Quanta gente já nem sonhar consegue. Quantos não sentem que já lhes tiraram tudo e por nada esperam!?...
Invadido pela luz projetada na janela do meu quarto, senti uma enorme vontade de refletir criando, para isso, uma espécie de oração inventada, que não fosse igual a todas as outras.
Sim, inventei as palavras, mas caí na tentação de me repetir nas intenções… e pedi…
Pedi um sinal, como se a vida não nos desse todos os sinais, todos os dias!?
Como, se ao mesmo tempo, esta tomada de consciência me fizesse sentir mais humano e por isso reforçasse a minha condição de resignado pecador, merecendo desta forma a absolvição divina. Como se o facto de sentir necessidade de receber um sinal de Deus me fizesse sentir mais próximo Dele e, por isso, mais merecedor da Sua atenção. Mais não fosse, merecedor do Seu perdão por mais esta tentação minha.
Rapidamente me contraí e dei graças por poder estar a viver o início de mais um dia com vontade de prosseguir. Tão simples quanto isto!...
Baixei os olhos humildemente e coloquei-os no chão da entrada da minha casa. Uma flor amarela, lembrando o sol, viçosa, só, sobre a relva, chamou-me a atenção… Ontem, não estava lá!…
Voltei a olhar o céu e a luz encandeou-me.
Sorri e agradeci a majestosidade do improvável, revelada na simplicidade do significado das coisas.
Não sei o que está para acontecer mas, tão simplesmente, quero que aconteça…

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sábado, 15 de fevereiro de 2014

Fotogramas de um vulcão

De cada vez que cerro os olhos
Há um fotograma nítido teu a estoirar comigo
Pontos coloridos entontecem-me a cabeça
Explodindo em mandalas de luz
Invadindo as minhas sinapses estranguladas
Provocando-me espasmos de prazer...

À deriva abro e fecho os olhos descontroladamente
Minhas pálpebras intumescidas registam fotogramas
De cada cota do teu corpo trémulo
Feito terreno revolto sujeito a enorme abalo sísmico
Transbordando lava quente
Que nos queima por dentro...

São esses, fotogramas nítidos
Captados pela ante câmara da nossa loucura
Flashados feitos espasmos elétricos intermináveis
Lembrando uma chuva de estrelas
De inúmeras  peças de um puzzle que rebentou no ar
Condenando-nos em seguida a um abraço em câmara lenta...

Os fotogramas são depois automáticos
Disparados pelos meus olhos já em pose
E é então que cada peça do puzzle, vai girando sobre si
Planando por sobre os nossos corpos, invadindo o meu em seguida
Rasando outras peças, sem que no entanto se toquem
Até encaixarem na sua posição serena inicial...

E ali estamos nós como se de magma se tratasse
Na espera do arrefecimento
Perpetuando-nos em rochas ígneas
Qual fotograma de um filme perfeito...

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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Em nome de tanta gente

Em nome dos que sofrem
Decidiu o poeta escrever este poema
Em nome dos que trabalham uma vida inteira
Calando o medo, a angústia e que no silêncio morrem
Em nome de todos os injustiçados
Subjugados que são de qualquer maneira
Em nome dos que não têm voz
Dos que nascem, vivem e morrem com o direito a serem felizes como nós
Em nome de todos os explorados
Daqueles a quem roubam o sangue e o suor e jamais serão recompensados
Em nome dos estropiados                     
Que por este mundo demente são renegados
Em nome de todas as mulheres e crianças vítimas de violência
Mártires de um mundo que finge não ver a indecência
Em nome de todos os que não têm nome
Dos que não pediram para viver e que no entanto passam fome
Em nome dos que não têm terra
E são, mesmo assim, vítimas da guerra
Em nome de todos os idosos esquecidos
Que choram lágrimas de solidão ao fim de tantos anos vividos
Em nome de todos os fracos e incapacitados
Que, sem apoio nem respeito, são por crocodilos governados
Em nome de todos os que dotados de sentimento profundo
Lutam pela liberdade e justiça por esse mundo
Em nome dos crentes, dos visionários
Apelidados com escárnio de revolucionários
Em nome dos artistas e sonhadores
Que ignorados nos fazem sonhar com coisas maiores
E o poeta, esgotado, sem saber mais o que gritar
Escreve este hino em nome do amor
Cheio de revolta e vontade de chorar…
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terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Recompensa ao final do dia

Assim me despeço de hoje.
Descontraio de mais um dia que passou sem nada de especial ter acontecido.
Ou não terá sido bem assim…
Um telefonema, uma notícia, o adeus na partida de um barco e a alegria de ver uma bebé a crescer no colo da sua mãe que a adora, são dádivas de valor incalculável.
A espera intensa de que um dia tudo vai ser ainda melhor e de que o mau tempo vai passar, valoriza ainda mais esse património.
O sol, que timidamente deu sinal, mais o silêncio que agora me envolve, embalado pelo Adaggio de Albinoni, oferecem-me a noite que mereço.
Como se não bastasse, envolto em pensamentos recorrentes, sonho com quem me ama.
Do meu sonho fazem parte também, todos os meus queridos que já partiram e que me visitam, nas horas em que a calma desce sobre mim, enquanto me despeço de mais um dia em que choveu.
E esta recompensa que humildemente recebo, com a ideia de que não mereço tanto, vivendo a sensação de que fui e sou feliz e de que não necessito de muito mais, ganha volume com a aveludada perspectiva de que um dia nos voltaremos a reencontrar…
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Da Capo

Por favor compõe algo de novo
Uma harmonia nunca antes sonhada
Faz-me vibrar como corda de guitarra
Ou toque agudo de um qualquer instrumento de sopro
Com novos sons constrói a mais linda melodia
Reunindo os tons e meios-tons que represento
Coloca-os na tua pauta esquecida
Entre as linhas já gastas pela vida
Não esqueças de corrigir pausas e dissonâncias
Só depois fecha os olhos e sente a música
Então, entre breves, semínimas e colcheias
Inventa um concerto triunfal
Quando a obra estiver completa
Reúne a orquestra que há em ti
E toca o resto das nossas vidas só p’ra mim
Sempre que de mim te cansares
Não desistas, Da Capo ao fim

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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Batidas

Uma porta fecha-se à chave
O coração não                                 
Ainda que chova lá fora…

A porta bate uma vez ao fechar-se
O coração não, continua a bater
Ainda que cansado…

E a chuva que cai forte
Molha quem passa e à porta tentou
Forçar de novo a entrada
A porta, essa negou…

Já o coração não hesitou
Gente a sair, gente a entrar
Amantes de todos os lados, loucos apaixonados
Que de amar e de bater o coração nunca deixou…
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Inventor

Acabei de inventar um novo amor
Sem que p’ra tal me tenha preparado
Não registei patente de bom grado
Sem problema, eis aqui o inventor
                             
Desde que haja papel à minha mão
Sou o maior inventor deste planeta
Basta dar asas à imaginação
Que o amor flui no aparo da caneta

Invento abraços, quadras e tercetos                                     
Pra isso, então que faça algum sentido
Com beijos, posso até criar sonetos

E se acaso este amor me baralhar
Já que por vezes é bem atrevido
É simples, tenho só de o apagar

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sábado, 8 de fevereiro de 2014

Tempestade

Fica o teu corpo tatuado na minha cama
Ainda que por lá nunca tenhas passado
Com o rímel que não usas
Deixas nos lençóis um poema escrito pela madrugada 
E acordas cansada
Fruto da vertigem da noite em que não dormimos juntos

Viro-me para o lado mas tu não estás
E no entanto cheiro o teu perfume entranhado na almofada que não usaste
De repente sinto uma aragem fresca no rosto
Que inicia a descida do meu corpo quente por debaixo do edredão
Refrescando a minha pele ardente  
Relaxando-me por fim

Não sei ao que vens
Nem tão pouco o que desejas
Sei que me ajeito na cama
Procuro estar confortável e deixo-me levar nessa brisa
Logo se instala um temporal sob o olhar atento da lua
E meu leito vira um mar revolto

O meu quarto é agora uma tempestade
Onde o meu corpo feito barco anda à deriva sem mão que agarre o leme
Só mais tarde vem a bonança
E as ondas do mar calmo que é o teu corpo
Mais a tua boca feita areia molhada pela água salgada dos teus olhos
Devolvem-me são e salvo ao cais seguro onde te invento

Então eu viro-me para o outro lado
Passo a mão no lençol na esperança de te encontrar mas tu não estás
Ajeito a almofada e aconchego-me
Sobreponho as pernas apertando com força os joelhos
E assim feito náufrago do teu amor ausente
Só penso em sair para o mar outra vez

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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Glória vã

E de repente volta tudo para trás           
Faz até lembrar o jogo da glória
Não há jeito, não há saída
Repete-se vezes sem conta a história
Confunde-se o tempo que é a própria vida
E o sucesso é tão fugaz…

Dados lançados, três casas p’rá frente
Se igual pontuação, novo lançamento
Segue o jogo, avança-se até à glória
Pura ilusão, falso encantamento…
A nula importância que tem a vitória
E tudo aquilo que embebeda a gente

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Em nome da São

Segunda-feira, 04 de Outubro de 1971, o dia em que tudo começou.
A minha primeira escola foi o Externato Cesário Verde, em Moscavide.
Recordo o primeiro dia de escola como se fosse hoje.
A minha mãe e o meu pai, desde o final do verão, que estavam ansiosos pelo novo ritmo que, a partir desse dia, passaria a fazer parte do quotidiano lá de casa. A minha mãe, por exemplo, passou a levantar-se todos os dias muito antes de toda a gente para nos cozinhar o almoço, que levaríamos, dentro dos termos, para a escola. Preferia que assim fosse e ficava feliz por podermos dispor de comida confeccionada no mesmo dia.
Na verdade, a escolha da escola tinha sido meticulosamente analisada e a decisão tomada transportava o sonho de verem crescer os seus filhos num ambiente de saudável aprendizagem e fé convicta de que aquela escola ajudaria a formar e a transformar os seus meninos em rapazes saudáveis e futuros homens de corpo inteiro.
Para tal, não só era importante a qualidade do ensino ali praticado, como o ambiente reinante, a dimensão humana dos professores, o rigor, a disciplina e a diversidade de atividades extracurriculares, garante da satisfação de todos.
O meu irmão vinha de uma experiência, de certa forma, traumatizante, após três anos de escola com uma professora esquizofrénica, que tratava mal a criançada.
Entrar na nova realidade foi, para o Nuno, quase como que ter iniciado a escola de novo.
O Nuno entrou para a terceira classe e teve como primeira professora a Dna. Alice, que mais tarde foi minha professora também.
Já eu, a primeira professora que tive, foi a São, como era conhecida e chamada por todos. Foi a melhor coisa que nos podia ter acontecido, a todos nós que debutávamos na primeira classe.
Aquela segunda-feira marcou para sempre a minha vida!
Nunca, até então, que me lembre, tinha passado um dia inteiro, tão longe da minha mãe, num ambiente tão estranho, para mim.
Senti a angústia da separação, logo pela manhã, quando a carrinha da escola fez a manobra, em frente à nossa casa, parou e lá de dentro saiu uma senhora, já com uma certa idade, a Dna. Francisca, avó do João Castelo, meu futuro colega de classe. A Dna. Francisca despediu-se pouco tempo depois da sua atividade de anos, dando lugar à Dna. Amélia.
A ideia de ir para a escola até que me seduzia. Queria aprender mais, uma vez que escrever o meu nome, fazer algumas contas e ler os títulos dos jornais, eram tarefas que fui fazendo a partir dos quatro anos de idade. Desde então, eu, o meu irmão e a Ilda, brincávamos aos médicos e eles, que já andavam na escola, insistiam em escrever as receitas, sendo que eu, mais pequeno, embirrei que aprenderia a fazê-lo, a fim de os poder acompanhar na seriedade das brincadeiras e, assim aconteceu.
A escola provocava, na verdade, um encantamento em mim.
Aprender, fazer novos amigos, conhecer a minha professora, começou por me tirar o sono dias antes e deixou-me ansioso, ao ponto de descurar o problema da separação e, na hora H, fui apanhado de surpresa.
Os meus braços não queriam separar-se dos da minha mãe e aquele foi um dos momentos mais angustiantes da minha vida.
Valeu o meu irmão que, durante as primeiras semanas de escola, me protegia oferecendo-me o seu abraço, apertando-me contra si, encostando a minha cabeça no seu ombro, fazendo-me sentir aconchegado e seguro, enquanto a carrinha completava o seu itenerário de recolha dos outros meninos e meninas, antes de, finalmente, rumar ao seu destino, a escola.
No Externato Cesário Verde, em Moscavide, fui feliz durante os anos todos em que lá andei e o primeiro ano com a São foi o mote para os anos que se seguiram.
Com a São ganhei o gosto pela escrita. As redações eram momentos únicos que nos obrigavam a pensar, a sonhar e a sentir. Os desenhos fizeram parte dos dois anos que passei na sala de aula com a São e todos os meus colegas, o Amílcar, o Paulo Fernandes, o Jorge Monteiro, o Crisóstomo, o Rui e o Alexandre Flores, o Gaspar, o Armando, o Paulo de Carvalho, o Fernando, o Jójó, o Hélder e tantos, tantos outros…
Sim foram dois anos, não que tenha reprovado na primeira classe, apenas porque a São transitou connosco para a segunda classe. Mudámos de sala, embora nos tenhamos mantido no primeiro andar do edifício, por troca com a Dna. Zezinha, que nesse ano deu aulas à primeira classe.
Na sala da São, fazíamos muitos trabalhos manuais e dávamos azo à nossa imaginação.
O ambiente era muito bom e a São, embora usasse uns óculos grandes, como era moda nos anos setenta, que lhe escondiam um pouco o olhar, transmitia-nos serenidade, carinho e amor, através da sua voz forte, segura, por vezes com um sotaque alentejano que, recordo, de vez em quando a denunciava, especialmente quando proferia palavras tais como “comigo”, abrindo um pouco o som da primeira sílaba.
Com a São aprendemos muito mais do que escrever, ler e contar.
Falávamos muito na sala de aula, sobre os mais diversos temas.
Um de cada vez, é certo, porque também aprendíamos o que era a disciplina, bem como saber ouvir os outros. Sempre que queríamos falar, colocávamos o dedo no ar e esperávamos a nossa vez, ou ordem para avançar. Todos tinham direito a falar e o medo de intervir não existia.
Gostávamos uns dos outros e confiávamos na nossa professora, que fomentava conversas, com as quais todos aprendíamos.
Um dia, falava-se na sala de um tema que entusiasmou toda a gente, o da saúde e a São foi colocando perguntas, às quais todos reagiam, na tentativa de reponderem primeiro do que os outros. Tal qual um jogo, em que a destreza é importante, quem pusesse mais depressa o dedo no ar era quem normalmente respondia, a não ser que, alguém menos interventivo o fizesse e aí, a São optava por lhe dar a palavra.
Foi então que a São perguntou:
- E como é que se chama àquele senhor que vai a casa das pessoas dar injeções ou fazer tratamentos? Humm?... – e ficou à espera da resposta fácil, com toda a gente a colocar o dedo no ar, quase que todos ao mesmo tempo.
Eu alinhei no gesto, no meio da euforia.
Perante tal cenário, a São decidiu democraticamente e deu a palavra à turma toda, que gritou em uníssono:
É o Sr. Enfermeiro!!! – berraram todos, baixando os braços, em seguida.
Todos, menos um…
Momento estranho aquele!... Toda a classe tinha respondido igual e, pelos vistos, estava certo. Só eu não estava tão certo disso!…
Eu mantinha o braço no ar, não convencido que a resposta estivesse efetivamente errada, mas ao mesmo tempo achando que poderia ter algo de novo a revelar à turma, mais não fosse uma outra forma de dar um outro nome a tão nobre profissão…
A São foi a primeira a perceber que eu estava confuso, talvez pela minha expressão facial, talvez porque o meu braço insistia em fazer de antena.
- Parece que o João tem alguma coisa para nos dizer!?... – disse a São e ficou à espera.
Toda a turma olhou, os meninos da frente viraram as cabeças para trás e eu senti-me importante. O que ia dizer a seguir poderia ser algo de novo e útil para todos…
Baixei o braço, respirei fundo e afirmei, por forma a todos ouvirem:
- Eu cá, chamo Sr. Pacheco!?...
Nesse momento fez-se silêncio para, de imediato ecoar na sala uma gargalhada geral.
A São sorriu e percebeu o meu ponto de vista. Apoiou-me, como apoiava todos os meninos e assim nos ajudou a crescer.
Aquele episódio representa, para mim, um dos momentos mais ternos passados na minha sala de aula e jamais o esquecerei, porque assim, através daquele modo tão tranquilo de lidar com o absurdo, cedo me apercebi que mostrar o nosso desconhecimento e a franqueza com que lidamos com a ignorância, não nos deve envergonhar nunca e que a solidariedade e o suporte dado a quem quer aprender pode conter, na mesma, a gargalhada sincera, sem espaço para qualquer maldade, no simples ato de achar graça.
Nesse dia, a São transmitiu-me mais do pude alguma vez imaginar e o episódio vivido faz com que, ainda hoje, não baixe o braço na hora de mostrar o meu desconhecimento, descontentamento, ou simplesmente na hora de questionar as minhas dúvidas.
Graças à São, recordo hoje quase todos os meus colegas da primeira e segunda classes, tão só, porque todos tivemos direito à nossa identidade individual, ao mesmo tempo que funcionávamos como grupo e, dessa forma, foi possível ganharmos o nosso espaço naquela sala de aula, projetado, mais tarde, nas nossas vidas.
Um beijinho, São!

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