sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

O Professor Ulisses

Ia a caminho dos dezasseis quando comecei a trabalhar no atelier do Professor Ulisses.
Ulisses Duarte, um homem verdadeiramente rico, embora sem fortuna.
Professor de Matemática, era também licenciado em Belas Artes. A poesia, contudo, foi sempre a sua bandeira e foi ela que ditou o seu percurso de resistente antifascista.
O Professor Ulisses defendia valores que bastas vezes o obrigavam a largar a capital, sendo obrigado a viver noutras paragens, uma vez que só assim podia continuar a ser livre.
Entre os diversos locais por onde passou, na esperança de que a PIDE não o encontrasse, Estremoz é aquele de que mais me lembro, talvez porque o meu avô Rafael, pai da minha mãe, filho de sevilhanos, tenha ali nascido e desta forma tenha eu registado, para sempre, esta sua paragem. Ou, talvez apenas, porque me contava diversos episódios ali decorridos.
A sua vida foi bastante preenchida, rica em histórias e condutas, assentes em valores com alicerces, escavados com muito trabalho, sentido de justiça, camaradagem, respeito e sonhos, muitos sonhos.
Mais tarde, vivendo já com a sua mulher, a Dna. Luisinha, a publicidade foi o seu ganha-pão, mas, mesmo assim, a criatividade e a disciplina permitiram-lhe criar uma estrutura ímpar, na altura.
Quando o Professor Ulisses me convidou para com ele trabalhar, pintávamos painéis e lonas publicitárias para estádios como os da Luz, Rio Ave, Bessa, Faro, Restelo, além de publicidade para o Autódromo do Estoril e inúmeros eventos, tais como o Estoril Open, congressos e conferências na FIL. A carteira de clientes era vasta. Para além das agências de publicidade com nomes conhecidos como o da Young & Rubicam, entre outras, havia outros clientes de peso, o Grupo Nabisco, Vidago, Pedras e Caramulo, Banco Pinto & Sotto Mayor, Shell, diversas marcas de automóvel e tantos, tantos outros, que já não recordo.
Desde cedo que o Professor Ulisses mostrou ser meu amigo.
Isso era evidente na forma como sempre criticou o meu trabalho, no sentido de responsabilidade que me incutia em tudo o que eu fazia, nas vezes em que se ausentava do atelier, deixando indicações dirigidas a cada um de nós, elementos da equipa, mas sempre com uma palavra especial em relação a mim.
Tal situação resultava do facto de ser eu o único que ali estava com instintiva vocação para o desenho e pintura.
Talvez o Professor Ulisses tenha visto em mim alguém que poderia dedicar-se e prosseguir o seu negócio, uma vez que, como personagem que foi sempre à frente do seu tempo, percebeu que o futuro traria esquecimento relativamente ao trabalho preciso e manual, para dar lugar à mecanização e informatização dos processos envolvidos, na realização dos trabalhos publicitários que executávamos. Sentia, o Professor Ulisses, que o seu tempo se esgotava e diversas vezes, confessava-me que queria parar e voltar a escrever, até ao fim dos seus dias.
Também, para mim, o cenário desenhado para o futuro do negócio, não era o que me fascinava e, por isso, achei que assim não seria feliz, por isso não prossegui, optando por outro rumo profissional. Hoje, tenho pena, mas não me arrependo.
O Professor Ulisses ensinou-me muito e, da nossa convivência ao longo de mais de seis anos, retirei mais do que o sonho de um negócio para o futuro.
Aprendi bastante a cada diálogo, a cada lição de vida. Muitas vezes não concordei com o que me dizia e algumas delas zangámo-nos a sério, mas a amizade e a admiração que sentíamos um pelo outro era o passaporte que trazíamos no bolso.
Hoje, quando escrevo, como é o caso, neste café, penso, por vezes, que o seu espírito me ajuda a embalar a escrita.
Olho a chávena da bica e recordo-o de cigarro na mão, as pontas do indicador e do dedo médio amarelas e trémulas, a levarem o filtro à boca. De cada vez que dava uma passa, com o fumo que libertava, saía sempre uma qualquer divagação, uma história, uma piada, por vezes uma poesia…
O Professor Ulisses tinha muitas histórias para contar. Histórias essas que ouvi atento e que cresceram comigo, ajudando-me a crescer, também.
Hoje, recordo-me daquela que se passou comigo e que confirma e reforça a ideia do rigor e responsabilidade que me exigia, na tentativa de que me tornasse um homem e um profissional melhor, dando-me, ao mesmo tempo, sinais de compreensão, apreço e incentivo, fazendo-me sentir que a criatividade, a liberdade de expressão e a alegria que colocamos nas coisas, quando as fazemos com vontade, não vêm nos cadernos, nem sequer podem ficar simplesmente sujeitas a avaliações quadradas, que ditam o real valor de cada um.
Há na verdade coisas que são nossas, nossas devem crescer e connosco devem morrer.
Naquele dia, o professor Ulisses teve de se ausentar do atelier para ir a uma reunião com um cliente.
Estávamos cheios de trabalho e havia que iniciar um novo trabalho para a Volvo, por sinal um bom cliente.
Enquanto as meninas davam fundos, com tinta branca, nas lonas, eu fiquei encarregado de desenhar as letras e o logotipo, na cartolina duplex, a fim de se recortarem os moldes para o desenho final.
                - Com as devidas construções geométricas! Quero essas letras desenhadas a régua e compasso, arcos abatidos, em ogiva, ovais, etc, etc… - disse-me, dando-me uns carolos na cabeça, em jeito de motivação.
Sentado ao estirador, disse-lhe para ir descansado, que quando viesse já estaria tudo pronto e entreguei-me à tarefa.
Era seu amigo e sabia que o seu medo se resumia a que eu, como habitualmente, acreditasse no meu jeito natural, golpe de vista e noção das proporções, esquecendo as suas recomendações de forma displicente e propositada, optando por fazer todo o trabalho a olho.
A geometria foi sempre, para mim, uma seca.
Mas bom, o importante era fazer o trabalho, depressa e bem.
A manhã decorreu normalmente e quando o Professor Ulisses regressou, todas as letras estavam desenhadas. O trabalho ficou asseado, mas as linhas de construção e os traços do compasso não existiam!...
O Professor Ulisses examinou o trabalho de fio a pavio, seguindo cada traço com o seu dedo amarelado do tabaco, nervoso, mas ao mesmo tempo contente pelo resultado final. Fez medições, mais medições e via-se que estava todo contente.
Não gostava que assim fosse, mas sentia-se orgulhoso de eu ter conseguido fazer tudo recorrendo ao meu jeito natural…
Fez-me ver que eu tinha de me esforçar e aprender, de uma vez por todas, cada uma das construções geométricas, mas no final, passou-me a mão à volta das costas e com os olhos brilhantes, que transpareciam satisfação e orgulho, disse-me aquela palavra que tantas vezes me dizia, sinal de cumplicidade e que ainda hoje consigo ouvir cá dentro:
                - Sacana!... – enquanto me puxava para si.
Depois, convidou-me a beber um café, no Rio de Prata, local das nossa tertúlias e, por entre passas e goles no seu café, contou-me:
                - Certa vez, numa das minhas estadias forçadas no Alentejo, em que sobrevivia como caixeiro-viajante, fui parar a Estremoz. Como precisava de ganhar algum dinheiro extra, arranjei um lugar como professor de Matemática, dando aulas à noite. Entre os meus alunos, havia alguns militares ali arranchados. Um deles passava as aulas a dormir… – dizia ele, interrompendo cada frase para tragar o café e queimar o seu cigarro… - Passou-se numa aula de trigonometria, depois de ter explicado como se acha o centro de uma circunferência, fazendo o exercício no quadro, após desenhar cada um dos passos necessários para tal, virei-me e vi o rapaz a dormir, uma vez mais… Sacana!... pensei… Desenhei uma circunferência ao lado, fiz barulho, proferindo o seu nome, o que surtiu o efeito desejado. O rapaz acordou estremunhado, olhou à sua volta e viu que todos o observavam, entre gargalhadas. – continuou – Tranquilamente, solicitei-lhe que viesse ao quadro e que achasse o centro daquela circunferência. O rapaz levantou-se, ajeitou a farda, levantou o braço direito, apontou o indicador na direção do quadro, fechou o olho esquerdo, avançou pelo corredor entre carteiras e, chegado ao quadro, encostou o dedo no interior da circunferência. É aqui, Senhor Professor, disse o rapaz!…
Eu escutava-o atento e esperava o desejado final.
                - Peguei no compasso – continuou o Professor Ulisses – conferi o ponto indicado e estava certíssimo!...
Logo de seguida, o inesperado:
                - O rapaz era o melhor atirador do regimento – gargalhou o Professor Ulisses.
E, por fim, a mensagem:
                - Pouco tempo depois, a tropa acabou para ele e nunca foi grande aluno…
Recebi a lição. O Professor Ulisses era assim.
Tenho saudades dele e recentemente comprei um livro seu.
Quero acreditar que ele é uma das minhas muitas inspirações e energias que me acompanham em cada coisa que faço.
Naquele dia, o Professor Ulisses ensinou-me que é importante sentirmo-nos bem connosco próprios.
Que a nossa intuição pode guiar-nos, mostrando-nos o caminho da felicidade, mas que o mundo que nos rodeia está cheio de imprevistos e que se estivermos bem preparados para as tempestades que possam surgir, mais facilmente chegaremos a porto seguro.
Dessa forma, seremos um marinheiro que soube guiar a sua embarcação e não um náufrago que conseguiu sobreviver.

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2 comentários:

Unknown disse...

Pois...como sabes eu sou a pessoa mais duvidosa que existe para falar de ULISSES DUARTE!(pela forma como o Admiro) Foi com grande comoção que li este teu post.Sem palavras.Um Grande Abraço

Unknown disse...

Decerto um grande homem e um grande visionário, que sorte tens em tê-lo conhecido. Essa lição (por sinal, transmitida deliciosamente por ti), demonstra a importância de saber escutar e aprender, sem menosprezarmos tendências naturais, ou deixarmos para trás o que tenhamos de inato. Afinal o saber não ocupa lugar!