quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Muda aos cinco, acaba aos dez!

Curioso que, embora com um enorme relógio à nossa disposição no alto da igreja, as regras ditavam que os apaixonantes dérbis, diariamente realizados cá em baixo, no adro da igreja, mudassem aos cinco e acabassem aos dez!
É que naquele tempo, o tempo significava pouco para nós.
Tanto fazia que durassem pouco mais do que alguns minutos, como se prolongassem por toda a manhã, ou parte da tarde.
Normalmente, pela manhã, os dérbis eram mais espontâneos.
Um a um, aos poucos, íamos chegando ao adro da igreja, com os cabelos ainda molhados do banho matinal, alguns de nós com uma carcaça na mão.
O Carlos Alberto gostava de pão com manteiga e açúcar. Lembro-me que por essa altura descobri que pão com banana era, também, muito bom!
Porque o tempo não nos preocupava, ali ficávamos a conversar um pouco, em roda, ou sentados no murete do adro, cada um tentando fazer-se ouvir, falando mais alto do que os outros. A discussão, normalmente, tinha a ver com os jogos e com as prestações individuais do dia anterior.
Nem todos apareciam de manhãzinha cedo. Uns porque tinham de ajudar os pais, outros porque tinham escola de manhã, outros, ainda, porque dormiam até mais tarde.
Por isso, à tarde, os dérbis eram mais refinados. Normalmente eram programados de véspera e chegávamos mesmo a registar os resultados e respetivos marcadores dos golos.
O Carlos Leitão era o homem das estatísticas, uma espécie de Luís de Freitas Lobo de então.
À hora do jogo, ficava o adro, por vezes, repleto de gente a observar os miúdos a jogarem.
O pai do Carlos Jorge, sempre a fumar, era presença assídua, também ele responsável pela realização dos jogos, já que grande parte das vezes, a bola era do Carlos Jorge.
O adro da igreja era todo em pedra de calçada portuguesa, fatal destino para quem fosse rasteirado ou estivesse à baliza.
Coitado do Fenanoca, tantas vezes que ia à baliza do Sporting, quando o Carlos Jorge passava temporadas com a mãe, em Algés e coitado do Zé Manel, conhecido por Zé Maria. Recordo os joelhos sempre ensanguentados e as sandálias rebentadas, com a sola a torcer-se nas biqueiras, à frente, o que lhe dava ainda maior dificuldade ao andar, uma vez que tropeçava nelas, quando se enrolavam debaixo dos pés.
A melhor baliza, com medidas bem definidas, era a porta da igreja, resistente, por certo, tantos foram os golos que encaixou. Era a baliza mais desejada, dado que o chão, digamos a pequena área, era em pedra lisa, como que um pequeno tapete à entrada da igreja.
Era tão lisa que nós aproveitávamo-la para fazermos as derrapagens com as nossas bicicletas. Desta forma, as pedras estavam sempre polidas e eram o encanto dos guarda-redes.
No lado oposto, medíamos os passos a partir dos degraus do cruzeiro e colocávamos uma pedra solta, que delimitava o poste esquerdo.
Quando uma bola era chutada a meia altura, travavam-se quentes e vivas discussões sobre se tinha, ou não, sido golo. Questão de golpe de vista ou simples interesse de cada uma das equipas. Se o resultado era folgado para uma delas, não era importante, aceitava-se o golo do adversário e seguia o jogo, mas quando a luta estava renhida e o resultado taco a taco, dava azo a confusão. Nesses casos, valia, normalmente, o poder de persuasão dos capitães das equipas e era vulgar vermos o Tutas e o Carlos Leitão a discutirem.
Havia também uma questão de respeito e alguns eram merecedores de maior crédito do que outros.
Mas tudo se desenrolava dentro de regras previamente definidas.
Por exemplo, assim que terminávamos de comer a carcaça ou a peça de fruta, pela manhã, acordava-se no início do jogo, independentemente da hora.
A decisão passava, quase sempre, por um Sporting-Benfica ou Benfica-Sporting, dado que a ordem era irrelevante, uma vez que o recinto era o mesmo.
Do lado dos leões, o capitão era o Carlos Leitão, figura emblemática do grupo, maior do que todos nós e jogador de respeito no “relvado”.
Ainda hoje recordo uma canelada que me deu num momento de desespero, numa disputa de bola em que ficou no meio de três lampiões, entre os quais eu. Durante algum tempo, fiquei profundamente magoado com tal atitude. Não se tinha tratado de uma contingência do jogo, mas sim duma reação intempestiva sua. Logo a mim, que me considerava o seu melhor amigo. Ultrapassámos o assunto e continuámos a ir todos os dias juntos, na camioneta, para o liceu.
Os leões tinham o Carlos Jorge na baliza, o Toninho Barbeiro, o Fenanoca, o Estopa, o Carlos Alberto, o Fernando, irmão do Raúl, o Narciso, o Chigadiço e outros que já não recordo bem se eram do Sporting ou do Benfica…
Outros havia que jogavam de um lado ou doutro, consoante a necessidade de se completar esta ou aquela equipa.
Do lado do Benfica, o maior de todos os tempos, na minha opinião. O jogador que me fazia sonhar. Aquele que pegava na bola, fintava todos os adversários e marcava golos de todas as maneiras possíveis na baliza do Carlos Jorge, que muitas vezes ficava irritado, pegava na bola e ia embora, o maior de todos, o Tutas.
O Tutas era o capitão e com ele na equipa todos jogavam. Não esqueço que, não sendo dotado para o futebol, fiz sempre parte das equipas do Benfica, no adro da igreja.
Para além de mim, o Tó Manel, o Palinho Ratinho, o João Carlos, inicialmente, depois passou-se para os verdes, o Ferro Velho, Ferrelho p’rós amigos, o Quim, o Rui Paulo, o Russo e outros que eventualmente não me lembro.
No tempo em que o tempo não importava para nada, o resultado era o mais importante.
Quando não se realizavam os Sporting-Benfica, jogávamos com equipas mistas.
Nesses casos, o segredo era a escolha dos elementos, na tentativa de se criarem equipas equilibradas. Mas a paixão com que se encarava o jogo era diferente. Os mecanismos não eram os mesmos…
O adro da igreja transformava-se num Estádio da Luz ou num Estádio de Alvalade sempre que jogavam Benfica e Sporting, só interrompido, não pelo árbitro, mas algumas vezes pelo Padre Manuel, persona non grata, que chamava frequentemente a GNR para correr atrás de nós miúdos, que dávamos a vida por aqueles momentos saudáveis de alegria e de pura camaradagem.
Cartão vermelho para ele, ao fim destes anos todos e a certeza que aquele adro será para sempre recordado por todos aqueles que ali viveram então, pela festa dos golos marcados de encontro à porta da igreja e não pelas suas homilias.
O mesmo tempo que nada valia para nós, encarregar-se-á disso, enquanto o relógio da igreja continuará lá no alto, sem nunca ter sido importante para o resultado dos dérbis!

… /… 


Um comentário:

Unknown disse...

Estes derbies, por ti relatados, fizeram-me reviver esses tempos sem tempo. Dos cinco filhos, coube-me o ingrato papel (único) de ser rapariga. Às grilhetas impostas à minha condição feminina, contrapunha-se a gritaria dos gaiatos exaltados nos desafios de bola: a liberdade sentia-se ali, bem à minha frente, no adro da Igreja. Lá estavam vocês, lá estavam dois dos meus irmãos. E eram inebriantes: a correria, os gritos de "PASSA A BOLA", o desassossego, a expectativa. Tão inebriante quanto a felicidade imaginada por meus olhos silenciosos, mas atentos.
Foi bom rever este filme, onde a película antiga - cheia de riscos e manchada pelo tempo - foi tão soberbamente recuperada que, juraria, ali em frente (enquanto atesto um carro de gasolina), fogem meus olhos inquietos, em busca da vossa alegria. Obrigada