Nos anos que trago de atividade profissional na indústria
farmacêutica, muitos foram as histórias e os momentos vividos com colegas e
amigos de todos os lugares de Portugal.
Para sempre, no coração, ficou a passagem que fiz pela Madeira, durante três anos, aonde me deslocava três a quatro vezes ao ano, por períodos de duas
semanas.
O tempo ali passado era reconfortante.
Ficava hospedado no Hotel Madeira, bem no centro do Funchal, o que
permitia deslocar-me a pé pela cidade, sem preocupações de maior, provocadas
pela dificuldade de estacionamento ou custos de parqueamento. Além do mais, a
mais-valia de poder praticar exercício físico entusiasmava-me, tal o número de
caminhadas, para trás e para diante, ao longo do dia.
O ar quente e húmido, por vezes sufocante e provocador de constante
transpiração que nos cobria o corpo, como se de uma película se tratasse,
ajudava, no entanto, à manutenção do peso e boa forma. Senti-lo na pele,
redimia-me relativamente aos excessos cometidos na véspera, derivados da riqueza
e tempêros gastronómicos da ilha.
As refeições, ao final do dia, mais do que simples jantares entre
colegas de trabalho, eram autênticas tertúlias de amigos, entre os quais, por
vezes, se criavam verdadeiros laços, quase familiares. Assim aconteceu com os
meus amigos Celso Ferreira, de Coimbra, tal como com a Cláudia Barata, assim
foi com o João Costa, com o Filipe Saião, com o Celso Ferraz, entre outros, que me deixaram
na memória a nostalgia que gosto de sentir de cada vez que me lembro ou falo
deles.
A Madeira será sempre para mim sinónimo de bem-estar, terra onde fiz, também, amizades . Para todas elas o meu abraço sentido! Para ti,
Sofia, para todo o pessoal do Hotel Madeira; Helmano e Manel, as vossas ponchas
são as melhores do mundo e para si, Sr. Gouveia, um abraço especial, a quem
dedico a crónica de hoje.
Nas inúmeras andanças pela ilha, deslocava-me no táxi do Sr. Gouveia,
habitualmente com o Celso Ferreira, dividindo entre os dois a despesa do mesmo,
no final da semana.
O Sr. Gouveia, madeirense de gema, há quase trinta anos que trabalhava
praticamente em exclusividade com a informação médica, trocando assim a azáfama
diária do pega e larga passageiros no Funchal e arredores, por agradáveis
passeios por toda a ilha, levando-nos a nós, delegados de informação médica,
aos locais certos, às horas certas, onde estariam os médicos para nos
receberem.
O Sr. Gouveia era assim como que uma espécie de colega residente, orientando o nosso trabalho, uma vez que as nossas viagens à Madeira aconteciam
de tempo a tempo e nos intervalos, era necessário controlar as marcações
agendadas, uma vez que a realidade do terreno alterava-se constantemente. Novos
consultórios, novos horários de atendimento, obrigatoriedade de marcações,
novos médicos, uns que deixavam a ilha, outros que, simplesmente, atingiam a idade
da reforma… O Sr. Gouveia sabia tudo e geria as agendas de todos os que
viajavam no seu táxi.
Ora, no meio de tantas horas passadas juntos, dentro do táxi e à mesa
do restaurante, prática diária que fazia parte do planeamento diário, com
roteiros previamente definidos, existem muitas histórias para contar. São
histórias que não quero nunca esquecer, porque são verdadeiros testemunhos da
minha existência, prova de que a amizade e as relações estabelecidas entre as
pessoas geram riqueza que trazemos para sempre connosco e que, também elas, fazem
parte do legado que deixamos à nossa volta, à disposição de quem se interesse
por elas. Este património faz-me sentir mais rico e, por isso, vou registando-o
em papel, para que não se perca, não vá dar-se o caso de um dia destes já não
ser capaz de o relatar, ou sequer lembrar.
Nas duas semanas passadas na ilha, uma era dedicada ao trabalho
desenvolvido no Funchal e a outra ocupada com o trabalho realizado no resto da
ilha. Normalmente, eu e o Celso iniciávamos a estadia no Funchal e, na segunda
semana, andávamos pela ilha. Desta forma, caso a primeira semana tivesse
corrido menos bem, devido à ausência de alguns clientes e isso era frequente,
havia sempre a possibilidade de tentarmos apanhar essas pessoas em falta, ao
fim do dia, aquando do regresso ao Funchal, após a volta pela ilha.
De segunda a sexta-feira, o Sr. Gouveia apanhava-nos, manhã cedo, no
Hotel Madeira, onde eu e o Celso Ferreira estávamos hospedados. Cada dia era
dedicado a uma volta, chamávamos assim; a volta de Santana, a volta de Porto
Moniz, a volta de Câmara de Lobos, conhecida pela meia volta, a volta da
Calheta e a do Machico.
Esta última, se corresse bem, permitia amoçarmos descansados, num
restaurante perto do aeroporto, entre Sta. Cruz e o Machico, uma vez que só
mais para a tarde tínhamos novos compromissos.
Aqueles almoços eram muito agradáveis.
A prática habitual indicava que o almoço do Sr. Gouveia era suportado
pelos dois delegados. No final da refeição, a despesa do Sr. Gouveia era
diluída pelas duas facturas e paga por cada um dos laboratórios. Assim era.
Verdade e curioso que o Sr. Gouveia fazia questão de nunca pedir nada:
- O que os senhores comerem é o que eu como – dizia constantemente.
Naquele dia, com efeito, a manhã de trabalho decorreu tranquilamente e
com tempo de nos sentarmos à mesa e desfrutarmos duma boa carne, um bom vinho,
com vista para o aeroporto e para o mar.
Estava um dia de sol, quente e o olhar pousado no horizonte, levou-nos
bem longe, fazendo-nos sentir o quão distante estávamos da família e apurando,
assim, o sentimento da saudade ao final de mais uma semana, com a perspectiva
de mais outra pela frente.
Poderá o leitor achar ridículo este sentir, que facilmente leva a
pensar que a oportunidade de se trabalhar na Madeira, estar hospedado, comer
bem e ainda por cima partilhar a amizade e o salutar convívio com amigos, por
si só, é uma dádiva (!?...)
Importa referir que quando vivemos as nossas realidades não é como
quando as observamos nos outros, à distância.
As rotinas instalam-se e aquelas pessoas que ali estão, felizes e
sortudas, ao olhar de tantas outras, vivem as suas realidades; conflitos
familiares, separações, filhos pequenos dos quais ficam privados da sua convivência
diária, a ausência de um simples beijo de boa noite, familiares adoentados,
entre dezenas de situações que ajudam a entristecer.
Naquele dia assim foi. A conversa foi deprimindo e deprimindo-nos
também. Eu e o Celso acabámos por partilhar alguns sentimentos relativamente ao
ambiente familiar de cada um.
Imbuídos no mesmo espírito e entusiasmados com a conversa sentida, não
demos conta que o Sr. Gouveia, com a mão a segurar a cabeça, fazia contas à vida,
como quem diz, tinha adormecido.
Foi o Celso que me chamou a atenção para o sucedido.
Sorrimos, deitámos um olhar ao copo vazio do Sr. Gouveia e
concordámos, num piscar de olhos cúmplice que, mais do que a conversa, tinha
sido ele o grande responsável pela sua sonolência pós-prandial.
Voltámos à conversa, que a dada altura se centrava na relação que cada
um de nós tinha com os seus irmãos e a própria intensidade dessas ligações.
De vez em quando éramos interrompidos pelos motores dos aviões em
aceleração na placa do aeroporto, mesmo ali ao lado.
De repente, um barulho muito forte fez estremecer a nossa mesa!?...
Olhámos para o lado e vimos o Sr. Gouveia, de olhos bem abertos, com o
ar de quem acordou, ou estar a chegar das profundezas do inferno!...
Sim, tinha sido ele o responsável pelo enorme estrondo capaz de abafar
a aspiração de um qualquer A330, na pista…
O Sr. Gouveia tinha acabado de dar um forte murro no tampo da mesa, o
que levou o Celso a dar um salto e dizer alto:
- Eh lá, homem!...
E o Sr. Gouveia, com os olhos semicerrados, vociferou no seu português
mais fechado, como nunca o tínhamos ouvido:
- Sê Joêo… ê cá agora quero aqui dezer uma côsa – fez uma pausa – lá em
casa sermos cinque irmões… - abriu os dedos da mão esquerda e mostrou-nos bem
de perto – CINQUE!! – disse mais alto – sermos mûinto amêgos, mas nã nos
falemos!...
Dito isto, voltou ao seu descanso pós-prandial.
Assim mesmo, como refere o ditado, “chegou e disse, tirou o chapéu e
foi-se”.
Eu e o Celso, ficámos sem palavras. Pedimos a conta, pagámos e
voltámos ao trabalho.
Desta forma, fiquei com uma história para contar durante toda a minha vida.
Tenho saudades do Sr. Gouveia e daqui lhe envio um abraço.
… /…
3 comentários:
Bonita Historia e bem contada...
bonita historia e muito bem contada....gostei
São tão bons os momentos em que abrimos a alma e nos deixamos levar pelas pequeninas peças de que somos construídos: a lembrança, a saudade, o amor, a amizade, o sonho... as vivências. E são tão bons os momentos que nos indicam que a vida (como diz o poeta) é feita de pequenos nadas. Tão bom saber que esses pequenos nadas nos transformam em seres melhores, se os soubermos aproveitar. Tão bom... tão belo e tão bom!
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