Quando eu era criança, vibrava em dias de festa, quer fossem de
aniversário ou dia de Natal, sempre que me ofereciam peças avulsas de Lego.
Naquele tempo, o Lego tinha essa característica, as peças eram
simples, padronizadas, levando a criançada a dar asas à imaginação, além de ser
possível colecionar mais e mais peças, levando a que a imaginação não tivesse
fim.
Hoje, o Lego é mais redutor e às crianças apenas lhes é sugerido
sonhar com as construções que lhes são propostas, manipulando-as, criando-lhes na mente as imagens desejadas que abrem caminho para um universo consumista,
formatado, castrador, acima de tudo.
Que saudades que eu tenho dos meus Legos!...
Lembras-te Quim, quando ia ter a tua casa e aí passávamos o dia a construir
sonhos com os Legos que montávamos e desmontávamos? Lembras-te das profissões
que inventávamos? Das vezes em que fomos bombeiros, quando brincávamos com as
ambulâncias e os autotanques que criávamos, a olhar para os carros dos bombeiros
estacionados perto do adro da igreja?
Lembras-te Ilda, dos anos seguidos, desde bem pequenos, em que
treinávamos a nossa imaginação, naqueles dias em que, à tarde, depois de
regressarmos da escola, ficávamos sentados à volta da mesa da salinha de estar dos meus
avós, a inventar construções que não tinham fim, até a noite chegar? Nesse preciso momento, acendia-se o candeeiro, a luz, como dizíamos e a minha avó dizia:
- Boa noite nos dê Deus!
E nós lá continuávamos a brincar…
Lembras-te, Carlos Alberto, quando virávamos o saco do Legos, para
brincarmos e a magia da brincadeira começava logo ao ouvirmos o barulho das peças, a espalharem-se pelo chão?
E tu, Nuno, meu irmão, que crescemos juntos e nos ajudámos um ao outro,
sempre que aquela peça não encaixava bem, ou simplesmente quando era preciso
desencaixá-la!? Que dizer dos nossos Legos marcados pelos dentes dum e doutro, prova de que eram tão nossos!?
Lembras-te das horas infinitas que passávamos a inventar novos objetos e brinquedos, ao mesmo tempo que desafiávamos o nosso próprio imaginário?
Foram também esses momentos que nos ajudaram a criar fascínio um pelo
outro…
Peça a peça, as construções de Lego que fazíamos iam crescendo e nós
crescíamos com elas…
Assim, guiámos carros, andámos de barco, voámos pela casa fora…
Em Sesimbra, passeámos pelas ruas, de mota, com os guiadores mais
completos que alguma vez vi. Até pisca-piscas tinham!...
Como éramos felizes quando os conduzíamos e virávamos de direção,
seguros, sob o olhar atento e feliz também, da nossa mãe…
Assim fossem as palavras…
Brincássemos nós com elas, montando-as e desmontando-as, sem nunca nos
sentirmos inseguros após as termos proferido.
Servissem elas para construirmos sonhos e podermos viajar para bem
longe de nós, sem nunca corrermos o risco de ficarmos presos a elas…
Que bom seria podermos embarcar em conversas loucas, conseguindo rir
ou fazer rir, chorar ou fazer chorar, tocando quem devessem elas tocar.
As palavras são livres de tocar ou serem tocadas por quem quer que
seja. Têm cor e têm intenções.
E são as palavras, que tal como os Legos, nos devem fazer felizes.
São elas que transportam as nossas marcas transformando-se, por isso, em testemunhos
de nós.
As palavras são para serem ditas, ouvidas e devem estar à disposição da
imaginação de cada um.
Cada qual deve utilizá-las, se possível, sem guião, ou discurso
previamente encomendado…
Quem me dera pudessem hoje oferecer-me um saco cheio de palavras, ainda que iguais
a tantas outras!...
Pudesse eu espalhá-las pelo chão, utilizando, de novo, cada uma delas,
ajudando-me a fazerem crescer os meus poemas e as minhas redações, como se
tivessem sido acabadas de inventar.
As palavras são para mim como os Legos de outrora…
Prefiro-as simples, ingénuas, primitivas, concedendo-me a oportunidade de lhes dar forma, de as acariciar, de as encaixar, seja qual for o seu fim…
Ou, dando-me elas, simplesmente a liberdade de as deixar assim, espalhadas pelo chão…
Amanhã, logo as arrumaria, ou então voltaria a brincar com elas. Amanhã, lá estariam elas prontas a fazerem-me feliz.
As palavras simples são como os Legos de outrora… Poucas, mas úteis e,
tal como eles, deveriam permitir-nos crescer a brincar e a sonhar!…
… /…
Um comentário:
Curiosa essa tua analogia. Sabes que na escrita criativa existe o pressuposto de que as frases são como legos? É na ordem das letrinhas que surgem as palavras e estas, por sua vez, constroem frases que, consoante a sua ordem, dão o sentido, em imagens e sentires vários. A descodificação das mensagens - lavada a cabo por quem as lê - transforma-se em mundos infinitos. Por tudo isso, o meu blog se chama pequenos mundos.
Como sempre, adorei o teu escrito.
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