Levantei-me hoje tranquilo, bem-disposto
até, aliás, como quase todos os dias acontece, não fosse o momento de
preocupação e angústia que estamos a viver por causa da saúde do meu pai.
Posso deitar-me cansado,
chateado, frustrado que isso não é problema. Quando o dia começa e a persiana do
quarto sobe, trata-se de um novo dia para viver.
Como sempre, roupas da cama para
trás, janela aberta enquanto tomo duche, ao mesmo tempo que Norah Jones, Incognito e Diana Krall passavam
na Smooth FM.
Hoje decidi desfazer a barba de
três dias e as calças de ganga rotas e coçadas deram lugar a outras mais
“apresentáveis”. A t-shirt esgaçada, foi trocada por um polo preto e em vez das
botas, apesar do calor, um sapatinho nobuck
mais de acordo com a ocasião.
No final, um perfumezinho suave
para não enjoar a interlocutora.
Vá lá saber-se porquê, mas nestas
alturas lembro-me sempre da minha mãe que, embora tenha aceitado sempre os meus
devaneios, na hora de avaliar a nossa apresentação, dava sempre a sua opinião,
normalmente assertiva. Reconheço-o hoje e que saudades tenho de a ouvir.
Cama feita antes de sair de casa,
pego na pasta e no saco, com três quadros para amostra, preparados de véspera
(Entenda-se véspera, algumas horas antes, uma vez que, como diz a minha amiga
Né, nós somos da espécie que nunca diz até amanhã quando nos vamos deitar,
porque já passa sempre da meia-noite. Até logo, portanto…) e saio rumo à Câmara
Municipal de Alcochete, não sem antes passar na pastelaria D. Manuel, na
Atalaia, para comprar pão fresco, de Sesimbra ou da Lagoinha, de preferência. A
minha filha gosta e eu aproveito-me da causa. Os pequenos-almoços cá em casa
voltaram a ser prática comum.
Desta vez, os 8,8 Km que separam
a Atalaia de Alcochete fizeram-me lembrar o trajeto percorrido por alguém que
vai fazer um exame. A vereadora da Cultura estaria à minha espera para termos
uma reunião agendada há quase um mês. Revi todo o meu discurso, elaborei
respostas a questões novas que poderiam surgir e reavaliei cada um dos meus
slides relativos ao meu portfólio. Tudo bem, pensei.
Alcochete é uma vila encantadora
a qualquer hora do dia mas, de manhã, guarda ainda aquela tipicidade das vilas
piscatórias, salineiras, bem portuguesas, em que o desejar bom dia é prática comum
entre pessoas que se cruzam.
Com a pasta em pele a tiracolo,
que me foi oferecida por alguém muito especial e um saco de transportar
molduras, cuidadosamente escolhido há dias, contendo três trabalhos meus, foi
assim que saí do carro, depois de bem estacionado, à sombra.
A caminho da Câmara não pude
deixar de sorrir para mim mesmo e lembrar os burros ajaezados até mais não,
fazendo pela vida.
O movimento no largo da Câmara
era anormal. Muita gente à porta, a fumar (!?...). Entrei…
No átrio a mesma exposição de há
semanas. Pensei, devem mantê-las por um mês (!?...)
Dirigi-me à senhora que se
encontrava na recepção, que tranquilamente falava ao telefone. Verdade que
interrompeu a conversa para me atender. Sem que eu dissesse nada, retorquiu
simpaticamente, “Estamos em greve!”…
Sou a favor das greves! Sou a
favor dos direitos dos trabalhadores! A greve é realmente a grande arma de luta
dos trabalhadores.
Não quero transformar este texto
num manifesto político.
Fico-me pelo respeito que tenho
por todos aqueles que vivem dias difíceis e lutam por melhores condições de
vida. Também eu, estou a sentir na pele os dias duros que se vivem, depois de
mais de trinta anos de trabalho.
Muito menos quero transformar
este texto num rosário de penas, mas o respeito por esses, é o mesmo respeito
que não senti hoje para comigo.
Nos anos que levo de trabalho, considerei
sempre o próximo. Tive sempre o cuidado de consultar a minha agenda e, sempre
que necessário foi alterar algum compromisso, por uma questão de princípios,
fi-lo por iniciativa própria. A ideia de poder estar a prejudicar, ou simplesmente
não respeitar o trabalho e o tempo de alguém, só por si, perturba-me, como
perturbado fiquei por ver aquela gente à porta a fumar, enquanto aquela
simpática senhora na recepção, desfazendo-se em desculpas, tentava perceber ao
que eu ia. A imagem que guardarei é a de “guardiã do templo” (Não sei se no
interior havia gente que não aderiu à greve!? A vereadora da cultura sim,
definitivamente).
Por fim a simpática senhora lá entendeu
que eu era um “fornecedor de serviços para exposições” (!?...)
E assim vamos andando… Um
departamento da cultura que desrespeita os cidadãos, trata mal os “artistas” e que
nem sequer explica à recepcionista da Câmara que um “fornecedor de serviços para
exposições” é um simples “artista” e que é esta “raça” que justifica a
existência de tais departamentos.
Sem qualquer ressentimento, mas
chateado, voltarei amanhã para reagendar a referida reunião, não sem antes procurar
consultar o “planeamento de greves” para os próximos tempos.
Quando saí a porta da Câmara
Municipal de Alcochete, ao ver o grupo de fumadores, não pude deixar de pensar
que, pelo menos, esta greve contribuirá para um aumento significativo do
consumo de tabaco. Não quero com isto dizer que haja um aproveitamento político
da situação e que se passe a imprimir nos maços de tabaco, “Cuidado, fazer
greve pode matar!”
Matar não mata, mas mói.
No regresso ao carro, senti-me,
aí sim, um verdadeiro burro ajaezado à Andaluza!...
Vim para casa e preparo-me para
comer o pão da Lagoinha e de Sesimbra com a minha filha.
Ai Laura, Laura, o que te espera…
Um comentário:
Excelente!!! espero que continue.
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