quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Fogaças de Alcochete e outras histórias

Atravessamos a Ponte Vasco da Gama e, logo na primeira saída, cortamos à direita, na direção do Montijo. Mais à frente, onde se lê zona comercial, viramos novamente. Depois, duas rotundas, novamente à direita, em cada uma delas e aí estamos nós na estrada, que nos leva direitinhos à Atalaia.
Assim que começamos a ver os plátanos que ladeiam o alcatrão, olhamos em frente e lá está ele, altaneiro, levemente descaído sobre a esquerda, o Santuário de Nossa Senhora da Atalaia.
Todos os anos a Atalaia está em festa por devoção à Santa, no último fim-de-semana de Agosto. As festas são bastante populares e de importante cariz religioso. Assim é desde 1409, segundo documentação existente.
A minha avó paterna, a avó Regina, sua devota, era daqui, mais propriamente de Alcochete.
Demais, a família é bem conhecida nas redondezas, uma das mais antigas de Alcochete, a família Salvação.
O elemento mais conhecido, talvez para a maioria das pessoas, é o ex-forcado e criador do Grupo de Forcados Amadores de Lisboa, do qual foi seu comandante, Nuno Salvação Barreto, estrela de Hollywood!
Com efeito, é ele quem torce a cabeça do toiro, numa das cenas emocionantes do filme clássico, Quo Vadis.
Consta que, à época, um só homem no mundo seria capaz de o fazer. Esse homem era ele.
Mas, a família Salvação está envolvida noutras histórias inéditas e marcantes na região, como é a história das fogaças de Alcochete, bolo único e bastante apreciado, hoje comercializado já nas grandes superfícies da região e até num ou outro ponto da margem norte.
Desde sempre me recordo de os ver em casa da minha avó Regina, que logo passou a receita à minha mãe. As fogaças de Alcochete satisfizeram a nossa gulodice natural de crianças e cresceram connosco até hoje.
Bastas vezes, no final de um jantar em família ou com amigos, servimo-las juntamente com o café.
A receita!?... Bem, essa, guardamo-la com muito carinho, escrita pela mão da nossa avó Regina e, mais recentemente, pela mão da nossa mãe.
Contrariamente a tanta gente que gosta de guardar para si o que outros desconhecem, será com muito gosto que a divulgarei, se alguém a desejar. Tem os seus truques e acreditem que sou bom conhecedor da matéria e apreciador das suas particularidades.
Deste modo, a quem eu passar a receita, fica desde já obrigado a fazer-me chegar uma amostra para degustação.
Ora, sabendo eu, desde sempre, que a receita de tal especiaria era oriunda da minha família, história bastas vezes contada pela minha avó, nunca me atrevi a divulgá-la aos sete ventos, sob pena da minha conversa poder cheirar a história inventada, fruto de imaginação.
Acontece que existe um testemunho vivo, testemunho esse com 83 anos de idade, cheio de vida e histórias para contar, que um dia me surpreendeu.
Há já quase quinze anos, num passeio que efetuei a Alcochete, encontrei as padarias Piqueira e Central fechadas, locais onde habitualmente se podem comprar as fogaças in sito.
Que desastre! Era como ir a Roma e não ver o Papa!...
Foi então que me indicaram a existência de uma senhora, a Dna. Maria que, em casa, cozia e vendia fogaças para fora.
Pés a caminho e lá fui eu à descoberta da senhora.
Após um pequeno passeio pelas vielas de Alcochete, entre perguntas e indicações prestadas por alguns habitantes, dei com duas portas brancas envidraçadas. De lado, ao longo de toda a fachada do prédio, um estendal de corda com cerca de duas dezenas de lenços de assoar, pendurados…
- São do meu filho… anda constipado – disse uma senhora, saída do interior da casa.
Presumi ser a Dna. Maria. Confirmei a expectativa.
- Entre, se faz favor – atirou enquanto arredava a cortina de tiras plásticas, facilitando a minha entrada em sua casa.
Já no seu interior, pude constatar que ali era também a sua oficina.
Os móveis, cobertos por lençóis brancos, continham alguns tabuleiros com fogaças. Umas já cozidas, cobertas com panos de cozinha, como que a precaverem-se das moscas, outras já amassadas, prontas a irem ao forno, tal qual era prática em casa da minha avó Regina.
De imediato deu-me a provar um exemplar e a empatia entre os dois foi natural, gerando animada conversa, ao ponto de lhe falar da história da nossa família e da importância das fogaças nas nossas vidas.
Os seus olhos brilhavam, quando de repente me surpreendeu, pedindo desculpa por me interromper…
- Espere aqui um bocadinho – disse, afastando-se na direção do interior da casa.
Depois de breves momentos estava de volta, com o braço direito no ar, empunhando uma folha de papel.
- Quer ver? – perguntou-me.
Naquele instante, a Dna. Maria proporcionou-me um dos momentos que nos provam que a partilha é a fórmula certa de nos fazer verdadeiramente felizes e através dos quais sentimos que vale a pena viver.
Aquela revelação seria tudo o que eu não imaginaria saber nunca, muito menos daquela forma.
- Sabe o que é isto?... Isto é a receita original que a sua avó vendeu à minha mãe, que passou a ser, na época, a única pessoa a fazer e a vender fogaças de Alcochete!
Fiquei mudo.
De imediato, trabalhei a informação, fiz os meus cálculos e não, não podia ser.
Depois, olhando a letra e tendo em conta a ortografia, concluí que não podia ter sido a minha avó Regina, mas a sua mãe, a minha bisavó Mariana!
A minha avó Regina veio para Lisboa por volta de mil novecentos e vinte e poucos, altura em que casou com o meu avô João.
A minha bisavó sim, continuou a viver em Alcochete e as fogaças eram tarefa familiar.
Desde há alguns anos que estava entrevada numa cama, era a minha avó ainda pequena.
A minha avó Regina foi a segunda filha mais velha de nove irmãos e, devido à doença da mãe, ajudou na criação de todos. Recordo que nos contava ter de lavar a roupa da casa no tanque, necessitando, para isso, de se colocar em cima duma caixa de madeira para conseguir executar a tarefa. A sua infância, foi uma infância de trabalho como as eram as de muitas crianças no passado.
- Essa letra não é a da minha avó, mas sim a da minha bisavó! Depois, era a minha bisavó que fazia e vendia fogaças, segundo sei. Assim ajudava o meu bisavô no governo da casa – retorqui.
Para mais, recordo muito bem a caligrafia da minha avó Regina, tal o número de cartas por avião que escreveu ao longo da vida para os seus irmãos espalhados pela África do Sul, Angola e Canadá!...
A nossa avó, já eu e o meu irmão éramos crescidinhos, por vezes, dava-nos a ler as cartas a fim de as revermos antes de fechar os envelopes.
E ali estava ela, a receita, escrita pela mão da minha bisavó Mariana!
Para mim, uma relíquia que farei questão de reaver um dia, ou, pelo menos, não lhe perder o rasto, uma vez que ela pertenceu à minha família, mas que agora é propriedade da família da Dna. Maria.
A vida tem destas coisas, nada é nosso de verdade. As coisas passam por nós e, às vezes, são surpreendentes os reencontros.
Como tudo na vida, sabem melhor quando são doces…
A partir daquele dia, sempre que vou a Alcochete, passo pela rua da Dna. Maria e, sempre que está em casa, dou-lhe um beijinho. Simpática, pergunta-me sempre o que é que eu faço porque, como refere simpaticamente, estou cada vez mais novo e mais bonito!?...
- Deve ser das fogaças!... Ou dos seus olhos… - respondo-lhe
As fogaças de Alcochete reforçam a ligação que tenho a esta região, mas não só, a Senhora da Atalaia também.
É que existe mais uma história curiosa ligada a Nossa Senhora da Atalaia. Passou-se também com a minha família mas, fica para uma próxima.
Hoje não me apetece escrever mais.
Vou ficar aqui a saborear esta fogaça…

... /...




3 comentários:

Anônimo disse...

Muito interessante a sua história ligada às fogaças.
Posso pedir-lhe a receita para ceostatis@sapo.pt ? Agradeço antecipadamente e lhe enviarei para provar as amostras correspondentes.

Muito obrigado

Jorge Marques

Sónia disse...

Que histórias surpreendentes sobre a genealogia Salvação! Muito gostaria de conhecer essa receita sob a forma caligráfica da avó/bisavó, que, com todo o prazer, submeterei à degustação.

Heidi disse...

O que reza a história:

https://issuu.com/gci_cma/docs/inalcochete11/16