quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Brasil à distância de um corte de cabelo

Ali estava eu, na cadeira do barbeiro…
Ah desculpem, cabeleireiro, assim é que é, porque essa de barbeiro, coisa dos nossos pais e avós, foi passando de moda, com o andar dos anos.
Quando eu era pequenino, sim, o meu pai levava-me ao barbeiro.
Recordo que me sentavam numa tábua colocada sobre os braços da cadeira, assento e costas redondos, num tom verde. Depois, colocavam-me um pano gigante, azulado, preso à volta do pescoço, que quase me estrangulava, ainda mais quando os dedos do barbeiro eram grossos e desajeitados. Por fim, um alfinete-de-ama prendia o tecido.
O aspecto final era o de um santo num andor, quase…
A partir de determinada idade, passei a ir ao cabeleireiro.
Ainda pequeno, por vontade da minha mãe, recordo que o meu cabelo encaracolado, rebelde e por isso difícil de domar, foi entregue às mãos artísticas do Sr. Pinto, com salão de cabeleireiro de homens no Apolo 70, ao Campo Pequeno. Profissional conceituado no meio, com vários concursos internacionais ganhos. Uma espécie de CR7 dos baetas!
Ali fui durante alguns anos e só por volta dos treze anos mudei passando a frequentar um salão que existia no cimo da Avenida da Igreja, em Alvalade, antes de se virar a esquina do Tico-Tico, do qual não consigo recordar o nome.
Fui seu cliente fiel durante muitos anos. Sim, que esta coisa de se mudar de cabeleireiro, é bastante complexa. Requer primeiramente uma razão forte para tal. Depois, existe todo um processo de mentalização. Em seguida, há que enfrentar uma certa dose de risco e, por fim, bastante insistência e nova habituação.
Para se ganhar total confiança no novo profissional são necessárias, mais ou menos, à volta de três ou quatro visitas, sendo obrigatório sair de lá satisfeito com o resultado do trabalho. Se assim não for, é um corrupio de novos ensaios e, muitas vezes, volta-se ao anterior.
Gostava do corte que o Sr. António me aplicava.
Deixei de lá ir regularmente quando passei a usar o cabelo comprido, por volta de 1980. Mais tarde, já nos anos noventa regressei, para não mais voltar, a partir de 1994, altura em que o Sr. António deixou de lá trabalhar.
Desses tempos, recordo os pequenos-almoços e lanches na Pastelaria Biarritz, logo após a saída do baeta, com o vento da avenida a soprar-me nas orelhas e pescoço nus e uma ou outra história vivida nas horas passadas na cadeira do Sr. António.
Estávamos no final de dezembro de 1991. O Natal já lá ia, preparava-se, pois, a passagem do ano.
O ano seguinte, prometia ser um ano de novidades a nível profissional, uma vez que já tinha sido abordado pela empresa no sentido de poder haver uma oportunidade de passagem para o departamento de Marketing, coisa que me entusiasmava verdadeiramente. Assim viria a acontecer e a boa nova foi oficialmente comunicada, logo nos primeiros dias de 1992, durante a reunião anual da empresa, realizada no Brasil, país escolhido como destino, premiando os objetivos de vendas alcançados em 1991.
A viagem foi recebida com entusiasmo por todos e, no meu caso, preparada com rigor.
A perspectiva de passar de um clima agreste, típico de janeiro na Europa para o sol abrasador
da América do Sul, em pleno verão, levou-me  fazer algumas compras de recurso, tais como calção de banho, óculos escuros e calçado leve e desportivo.
Os cuidados com o corpo também não foram esquecidos e, assim, protetor solar e bronzeador fizeram parte da lista.
A pensar no calor que iria ter de suportar, incluí na lista de tarefas o habitual corte de cabelo, para não correr o risco de me chatear constantemente com os jeitos e trejeitos que o mesmo ganhava constantemente, ainda mais com praia e piscina à mistura.
Deste modo, programei uma passagem pelo Sr. António uns dias antes da partida.

Ali estava eu, na cadeira, a ser atendido pelo Sr. António…
Normalmente, o salão encontrava-se cheio, mas, naquele dia, o movimento era ainda maior.
Talvez devido à época que se atravessava, de descontração para muitos, de férias para outros, tenha levado a um maior descuido relativamente ao comprimento das melenas, ou simplesmente a disponibilidade permitisse uma programação de ida ao barbeiro, dado que as semanas anteriores à quadra natalícia são muito atarefadas e o tempo parece que não chega para tudo.
Depois de algum tempo à espera, lá chegou a minha vez!
O mesmo ritual de sempre! Em primeiro lugar, o célebre pano. Depois uma passagem do cabelo por água, que a tesoura emperrava se assim não fosse. Em seguida, o corte… tica, tica, tica, o Sr. António utilizava todo o seu saber com os mindinhos no ar, manuseando com arte a tesoura e o pente. Eu, quase que adormecia com o som e relaxe que tal momento me  proporcionava. Eis senão que:
- Sim, Sr. Doutor! Há quanto tempo não o via, Sr. Doutor! Como está o senhor, Sr. Doutor? E o seu pai, Sr. Doutor?... Veja se está bem assim, Sr. Doutor?...
Sr. Doutor para aqui, Sr. Doutor para ali… Levantei a cabeça e olhei para a direita. Na cadeira ao meu lado, encontrava-se um rapaz mais novo do que eu (tinha eu então vinte e seis anos), talvez para aí com os seus vinte anos, à volta disso, todo enfarpelado, com um fato azul-escuro.
Impossível ter ficado indiferente a tanta mordomia no atendimento. Que deferência, que atenção desmesurada, que subserviência!...
O Sr. António, percebendo a minha curiosidade, sorriu e esclareceu-me.
Contou-me tratar-se de um cliente que conheciam desde criança. O avô era cliente de há muitos anos, um dos mais antigos do salão e o seu pai também.
Os anos passaram e tinha acabado de se licenciar em direito, há pouco tempo, pelo que faziam questão de o tratar por Sr. Doutor.
No mínimo, curiosa a história, demonstrativa da nossa forma servil e bem portuguesa de lidarmos com o próximo. Rocambolesca, pela sua continuidade, gerando uma situação inesperada, que nem sequer eu podia imaginar (!?...)

Ali estava eu, sentado no avião da TAP que nos levava na maior viagem que tinha feito até então, rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos, em S. Paulo.
O Brasil! Que magia!...
Era a primeira vez que cruzava o Atlântico e a sensação era incrível.
Até então, o Brasil era parte dos meus sonhos de menino.
Primeiro que tudo, por causa do futebol; Pelé, Jairzinho, Carlos Alberto, Rivelino, Garrincha e  Tostão, as coleções de cromos, os mundiais de futebol na televisão, a eterna discussão sobre quem era o melhor, se Pelé, se Eusébio, os desenhos animados dos Flinstones, falados em português do Brasil, os almanaques do Patinhas, a história de Portugal, Pedro Álvares Cabral, o grito do Ipiranga!
Já na adolescência, sempre o futebol e a música; Chico Buarque, Bethânia, Gal Costa, Vinicius, Toquinho, Ivan Lins, Simone, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, João Gilberto, Elis Regina, Jorge Bem e… bem, tantos outros, para não falar de Gabriela Cravo e Canela e de tudo o que as novelas brasileiras trouxeram de novidade e magia às nossas vidas, a partir de 1976!...
Chegámos pela manhã, recordo-me, envoltos numa agitação esfuziante.
Para quase todos nós, o Brasil era um sonho.
Ainda no decorrer da viagem, havia quem brincasse, adotando o sotaque brasileiro, como que antecipando expressões e diálogos que iríamos ouvir e pronunciar nos próximos dias.
Alguns falavam dos câmbios e das recomendações feitas por amigos que lá tinham estado. Outros, já no aeroporto, procuravam as tão faladas e sonhadas mulheres brasileiras que povoavam a imaginação do homem português. Mesmo as nossas colegas demonstravam essa curiosidade e comentavam-no. Afinal, também elas as inspiravam, numa época de abertura e descoberta, aquela que vivíamos em Portugal.
Enquanto nos preparávamos para sair do avião, iniciei uma brincadeira com uma colega minha, a Sónia Marçal, dando-lhe continuação já no autocarro que nos transportou para o Hotel Maksoud Plaza, perto da Avenida Paulista.
Brincava, olhando para a rua através do vidro do autocarro e dizendo repetidas vezes à Sónia que conhecia este e aquele, tudo gente que circulava nos passeios. Como se todas as pessoas fossem actores e figurantes conhecidos das telenovelas exibidas nas televisões portuguesas, ao longo dos últimos dezasseis anos.
Brincadeira singela que resultava em boa disposição para quem estava feliz, ao mesmo tempo cansado e um pouco descompensado, situação normal após quase dez horas de voo.
A Sónia ria-se com os disparates. A determinada altura disse-lhe, ao acaso:
- E espera, que o mais surpreendente ainda está para vir! Deixa sairmos do autocarro!... – mais risos por parte da Sónia.
Finalmente chegámos ao Hotel.
O alvoroço resultante da retirada das malas, juntamente com o primeiro contacto verdadeiramente sentido com o clima húmido e quente de S. Paulo agitou-nos ainda mais e, entre encontrões, ruído de vozes e gargalhadas, entrámos pelo hall do hotel adentro, direitos ao balcão da recepção onde teríamos de fazer o check-in. Todos em fila, a Sónia manteve-se junto a mim.

Ali estávamos nós, em S. Paulo, a 7950 Km de nossas casas, longe de tudo e de todos…
Pensávamos!…
Olhei para o balcão, a fim de me aperceber de quantas pessoas tinha à minha frente, desejoso de fazer o check-in e, assim, subir rapidamente para o quarto, para tomar o tão desejado e merecido duche.
De repente, algo me chamou a atenção e surpreso com o bizarro da situação, decidi retomar a brincadeira. Voltei-me para a Sónia e disse-lhe:
- Há pouco referi que o mais surpreendente estava ainda para vir, lembras-te? – atirei-lhe – Olha!... Estás a ver aquele tipo a ser atendido, ali ao balcão? Aquele ali, de óculos... Conheço-o!...
A Sónia riu-se e eu insisti:
- É verdade, não acreditas!?... E mais, vou lá falar com ele!...
A Sónia continuava a rir e não valorizou a minha observação.
- Ai não acreditas? – perguntei-lhe e antes que obtivesse qualquer resposta, puxei-a por um braço, saímos da fila e avançámos duas ou três posições, pedindo licença aos colegas.
A Sónia começou a ficar incomodada.
- Ó João, deixa-te de parvoíces! Vá, já chega. Era mesmo isso, logo aqui, em S. Paulo, com um mundo tão grande!...
- Vais ver! – retorqui.
Chegados ao balcão, toquei nas costas da pessoa que fazia o check-in.
Aparentava ter à volta dos vinte anos e usava fato e gravata.
Mostrou-se surpreendido com a abordagem feita. Descansei-o de imediato, esboçando-lhe um sorriso franco.
A Sónia estava incomodada e parecia,ao mesmo tempo, envergonhada, dado o tom e expressão facial.
- Desculpe estar a incomodá-lo – avancei – diga, por favor a esta minha amiga que é português, que vive em Lisboa, recém-licenciado em direito e que cortou o cabelo há cerca de dois dias em Alvalade, na Avenida da Igreja!
O rapaz e a Sónia ficaram atónitos com tal descrição e, por breves instantes, nem sequer conseguiram raciocinar… Lógico que eu o conhecia!
- Como é que você sabe tudo isso? É bruxo? – perguntou, afastando-se um pouco para trás.
Bom, lá tive que lhes contar a história toda e, a pouco e pouco, os dois voltaram ao planeta Terra. Acabámos os três a rir e concluímos, em concordância total, o quão pequenino este mundo é, para além de ser redondo, também.
Há alguns dias atrás, nem sequer sabia da existência de tal personagem, dois dias depois, estava a revê-lo a quase 8000 Km de casa, em S. Paulo.
Olhava-o, ao Sr. Doutor e parecia que ouvia o som da tesoura, marcando o compasso, ao fundo…
Ele há na verdade com cada história!...

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