domingo, 14 de setembro de 2014

Para quê complicar?

Mania de complicar o que é simples…
Ou, como uma história nos reporta a outra e essa outra a uma terceira e a conclusão de todas elas é a mesma… Para quê complicar?...
O filme não é grande espingarda mas, o facto de ter Liam Neeson e Pierce Brosnan como protagonistas, fez-me parar o zaping iniciado, no canal Hollywood e passar algum tempo da minha tarde de domingo refastelado num dos sofás da sala, enquanto a minha filha, no outro, se esforçava para acompanhar o filme, fazendo-me, assim, companhia. Entre um ou outro comentário meu, lá ia ela encontrando uns minutos para dormitar.
Conforme já referi, o filme, embora passado no tempo em que a bala era a lei, não é grande espingarda. O seu título, Seraphim Falls, data de 2006 e em português recebeu o nome de “Duelo de assassinos”. A propósito, para quê complicar?...
O enredo traduz a caçada exercida por um coronel da Confederação (Liam Neeson) a um soldado da União (Pierce Brosnan), após a Guerra Civil Americana, por volta de 1860, explorando temas civis, tais como a violência, a vingança, a sobrevivência humana, a guerra e seus traumas. Toda a trama se passa no faroeste, sendo visível a preocupação do fiel retrato da época.
Em determinado momento fui atraiçoado!...
Quando já tinha entrado em todo este ambiente (só falta mesmo a televisão interativa reproduzir os respectivos odores), com palavras carregadas de mau hálito, proferidas bem perto da cara uns dos outros, cavalos mal tratados, personagens sem verem banho há meses, cheiro a pólvora e sangue, palavreado rude e ordinário, em consonância, eis que sou confrontado com o insólito!...
Em plena cena de suspense, ocasião em que Pierce Brosnan se encontra refém num acampamento de operários que construíam uma linha de caminho-de-ferro e é surpreendido pela chegada de Liam Neeson ao local, em sua perseguição, este, caminhando por entre as tendas ali existentes, vira-se para os seus dois companheiros de caçada e ordena-lhes:
- Sigam que eu já vos apanho. Tenho de ir fazer chichi!...
Assim, sem mais nem menos!?... Ou melhor, a legendagem matou-me o filme com esta preciosidade! Um pistoleiro não faz chichi!...
Fazer chichi!?... Não podia ao menos ser “vou ali verter águas”, “vou mudar a água às azeitonas” Ok, o filme é passado no faroeste e não no Alentejo… Ou porque não simplesmente “vou ali mijar”!?... Para quê complicar?...
Foi aqui que comentei alto e a minha filha abriu os olhos.
Este momento insólito transportou-me para um episódio que vivi, corria o ano de 1987, encontrando-me na ocasião a cumprir o serviço militar nas fileiras do exército português. Agora sou eu que estou a complicar! Estava na tropa!... Melhor assim!...
Depois de cumprida a recruta, fiquei aquartelado na Graça e prestei serviço na DSFOE (Direção dos Serviços, Fortificações e Obras do Exército), ao Campo de Sta. Clara, para descomplicar, junto à Feira da Ladra.
Ora, de quinze em quinze dias, à terça-feira, se não me engano, todos os militares ali aquartelados, prestando serviço nas diversas instituições do exército, tinham de se apresentar no Quartel da Graça para a formatura quinzenal, onde o nosso Comandante de Companhia passava revista às tropas.
O nosso capitão era tido como um terror.
Parecia o capitão Haddock, dos livros do Tintin, com a sua barba cerrada e feitio refilão, era pequenino e tinha a alcunha do Ayatola. À parte disto, tinha um certo humor e pude, por diversas vezes, constatar que era justo nos seus julgamentos e decisões.
Desconheço o que se passou desde então com o Capitão Saraiva.
Na terça-feira, dia 11 de novembro de 1986, dia de São Martinho, pela manhã, fomos informados que, da parte da tarde, após a formatura quinzenal, teríamos a visita do Major Capelão, que nos iria falar da história de S. Martinho e da sua importância no panorama religioso da igreja católica. Deste modo, quando terminasse a formatura na parada, deveríamos reunirmo-nos nas oficinas do quartel, local escolhido para a palestra.
Claro que foi assunto largamente comentado ao longo de toda a manhã.
Primeiro, um Major Padre! À partida, a curiosidade era por si só, motivo de chacota e de algumas piadas inventadas no momento.
Depois, quanto tempo iríamos ter de estar sentados dentro daquele barracão e o que esse tempo representava no atraso das tarefas nos nossos serviços?...
A melhor forma de o suportar era rir.
E assim foi!
O próprio Capitão Saraiva brincava com a situação e atirou umas piadas durante a revista na parada, enquanto o major instalava o equipamento sonoro nas oficinas. Estávamos todos curiosos!...
Finda a formatura, lá fomos para a palestra.
Não havia lugares sentados para todos. Fomo-nos arrumando, encostados às paredes e aos portões e dividimos os bancos corridos que existiam. Aos poucos estávamos todos instalados, no meio duma nuvem de fumo, uma vez que a maior parte de nós fumava.
Estavam ali à volta de duzentos homens, soldados, cabos, sargentos e o próprio Capitão Saraiva, com o seu sorriso malicioso por debaixo da barba e os olhos semicerrados, a perderem-se abaixo das sobrancelhas farfalhudas. Hoje, acho que os seus olhos eram parecidos aos do Gilberto Madaíl…
Não foi efetivamente uma tarde fácil para o major.
De tudo ele tentou para prender a atenção dos militares, mas a ação de evangelização não convenceu ninguém.
Começou por desmistificar a popularidade do São Martinho, bem como os rituais gastronómicos inerentes ao seu dia. Depois, tentou falar de todo o seu percurso na Terra, das suas virtudes, dos seus milagres. Na verdade, todos nos questionávamos, para quê complicar?...
A malta queria era bazar dali para fora, mas era chegada a hora das questões que o major queria que colocássemos, para ver se tínhamos entendido bem a matéria.
Eis que em determinado momento, quando a seca já era demais e ninguém se adiantava no sentido de perguntar algo, um dos cabos mais velhos, dos chamados Cabos Chicos, isto é, cabos contratados, homem para os seus quarenta anos, colocou o dedo no ar, como se estivesse na escola, provocando risada nos que o rodeavam.
O Major Capelão delirou com a interação daquele militar mais velho.
- Finalmente alguém! Diz, jovem!... – soltou, apontando para o fundo da sala com o braço estendido e palma da mão a quarenta e cinco graus.
- Posso ir fazer cocó? – perguntou o cabo
O barracão explodiu e até o capitão Saraiva não aguentou a gargalhada espontânea.
- Espera só um bocadinho – disse o Major Capelão – Só quero terminar com uma música para todos cantarmos!
Enquanto ríamos ainda todos, começou a soar a música do Padre Zezinho “Amar como Jesus amou”, cantada pelo José Cid, enquanto o Major batia as palminhas e tentava que nós todos entoássemos a canção. Assim fizémos para fim de festa.
Rapidamente o Major meteu a aparelhagem na sua Peugeot 204 cinzenta, do exército e basou dali para fora.
Mantivemo-nos nos nossos lugares à espera de ordens do Comandante da Companhia, o Capitão Saraiva.
O Capitão Saraiva tentava colocar uma expressão séria, mas não resistia e, de vez em quando, deixava soltar uma ou outra lágrima provocada pelo riso, que limpava com os dedos ou, em último recurso, com o lenço.
Quando a platéia ficou mais calma, iniciou o discurso final…
- Meus senhores, com todo o respeito pelo nosso Major Capelão, bem como respeitando todo o esforço aqui desenvolvido, eu, como vosso Comandante de Companhia, vos digo para esquecerem o que ele aqui vos contou. O São Martinho será sempre o santo das castanhas assadas e da água-pé! Tenho dito e agora ide para os vossos serviços!
Hoje, ao ler a legenda da fala do Liam Neeson, a do chichi, não pude deixar de me lembrar da do cocó, soltada pelo meu camarada da tropa.
Ambas despropositadas, uma complicou um filme que estava a correr bem e a outra descomplicou uma situação que estava a chatear.
Já a conclusão do Capitão Saraiva reforçou a ideia de que, quando as coisas são fáceis e do consenso geral, para quê torná-las complicadas?...
Vou ter de ver a parte do filme que perdi enquanto contava este episódio à minha filha.

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