quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Mete-me nojo

Mete-me nojo quando ligo a televisão e deparo com a histeria levada ao extremo, apresentada nos programas das manhãs, apenas interrompida pelos intermináveis blocos de publicidade, que confundem as cabeças ainda perturbadas pelo vazio dos conteúdos televisivos.
Decido fazer um zapping rápido, na tentativa de encontrar um tema que me desperte a atenção.
Paro na TVI, que apresenta uma reportagem sobre um dos assuntos mais mediáticos da presente atualidade nacional, a morte estúpida dos seis estudantes, na praia do Meco.
Que nojo me mete a corja que governa o meu país.
Que nojo me mete quem comanda os braços analfabetizantes e fascistoides que atrofiam o meu país.
Metem-me nojo as vozes, falsamente doridas, que imprimem emoções aos programas de televisão, dividindo as mesmas, entre o choro sentido, provocado, e a gargalhada brejeira, gozadora e achincalhatória.
Metem-me nojo todos aqueles que, em determinada ocasião e beneficiando da feliz conjuntura profissional com que foram brindadas as suas vidas, puderam intervir e legislar, no sentido de nos terem proporcionado um modelo de sociedade melhor, mais justo e mais solidário e não o fizeram.
Metem-me nojo os que, ao longo dos anos de parasitismo político, puderam instigar programas de elasticidade intelectual, esquecendo, por uma vez, a febre do retorno imediato e adrenalinóide que as modas carregam, transformada na obsessão de sucesso cego, que se deseja mostrar ao mundo. Para não falar do poder que a fama e o dinheiro representam nos modelos de sociedades ditas modernas, cada vez mais perigosas e vazias.
Mete-me nojo o tempo perdido na procura dos vocábulos politicamente corretos, meticulosamente estudados, para serem proferidos em frente das câmaras, balanceados entre o efeito do discurso impactante e a consciência do vazio do conteúdo do mesmo, deixando todos num silêncio redutor, convencidos que muito mais haveria para dizer, não fosse a urgência de se avançar para mais um bloco de publicidade.
Mete-me nojo o amontoado de processos sujos e injustiças que se vão acumulando nas barras dos tribunais. O dinheiro e tempo gastos nas edições das parangonas diárias, como se, apenas por isso, fosse obrigatório reconhecer-se e valorizar-se todos aqueles que intervêm na abordagem das situações e que, à partida, já sabem que quanto mais mexem na porcaria, mais ela cheira mal.
Mete-me nojo que ninguém se preocupe com as dúvidas, mágoas e angústias, que se vão acumulando no supremo tribunal da nossa existência, a nossa consciência.
Enquanto crianças, falam-nos de um mundo belo, afastam-nos da realidade dura e empurram-nos para a ficção.
Falam-nos do sucesso como se da Pedra Filosofal se tratasse, não só permitindo-nos obter o elixir da longa vida, como a felicidade também, sem, para isso, ser necessário dar algo em troca.
Atiram-nos com a obrigatoriedade de cumprirmos com os deveres de cidadão, impostos por gente que aprova leis injustas e obsoletas, se possível sem as questionarmos, ou tão-somente nos questionarmos a quem elas servem, como se essa fosse a única forma e a mais garantida para nos sentirmos ressarcidos e com isso podermos ser felizes.
Ensinam-nos a ser líderes. Dizem-nos que o importante é vencer, vencer, vencer e não nos avisam que a derrota também existe. Quantos mais olhos em cima de nós, melhor, porque para os derrotados, não faltarão dedos acusadores, inquisidores, os mesmos dedos que fazem parte da mão, cuja tarefa mais nobre que pode exercer é a de ajudar a reerguer. Por vezes resumem o nosso papel à máxima que diz que a vida é curta e que o mais importante é safarmo-nos enquanto nela cá andarmos…
Esquecem-se afinal de nos educar, ou fazem por se esquecer de nos ajudarem a transformarmo-nos em pessoas melhores, verdadeiros seres humanos.
Embrulham, muito bem embrulhados, os valores essenciais, como o são, a liberdade, a solidariedade, a justiça e o respeito pelo próximo, colocando-os numa vitrina, onde são expostos de uma forma inacessível, mas à vista de todos, utilizando-os, sempre que necessários, em rituais manipuladores, que vão dos discursos redondos de conjuntura, às lágrimas secas, amorfas, mas em quantidade razoável, sempre que de verdadeiras tragédias se trata.
Assim está a acontecer com a tragédia do Meco.
Que as praxes são estúpidas, todos nós sabemos. Que os meninos e as meninas que se entretêm com elas são estúpidos, também já se sabe, o que importa é que se previna enquanto é tempo. Que estes meninos não se tornem em gente perigosa que, mais dia, menos dia, encabeçará o board de uma empresa ou governo deste país.
E nesta cultura estupidificante, ninguém se preocupa verdadeiramente com a angústia profundamente marcada nas expressões dos rostos daquelas mães, cujas vidas, tais como as dos seus filhos, foram interrompidas por uma onda grandiosa e assassina que, além da força da água, transportava a força da injustiça em que vivemos neste nosso país, também ele praxado pelos seus iguais. Oh, país este em que a educação, a cultura e a justiça são constantemente adiadas.
Aquelas mães carregam neste momento a maior das dores que alguém pode transportar. E irão carregá-la sozinhas durante o resto das suas vidas porque, em breve, os tribunais colocarão este processo no monte dos processos ad aeternum, junto do processo de Camarate, do processo da Casa Pia, do processo do BPN, do processo de Entre-os-Rios, do processo do desaparecimento do Rui Pedro, já lá vão tantos anos e tantos outros que não tiveram sequer direito a tempo de antena, porque, vá-se lá saber porquê, não justificavam o share das audiências.
Mesmo a televisão, em breve, deixará de falar no assunto, interrompida que será por um necessário bloco de publicidade que viabilizará uma qualquer Casa dos Segredos.
Afinal, há tantas outras coisas que indignam verdadeiramente os portugueses…

… /…


Um comentário:

a_ciganita disse...

Vivemos num mundo estranho onde a ignorância se ramifica, qual cancro de sociedade em putrefacção. E dá jeito aos grandes senhores - porque, vá-se lá saber como - fintam as desgraças, com facilidade e, enquanto estas não lhes baterem à porta, não sabem o que é a verdadeira dor; ignoram as necessidades primárias de um povo que também se demite do grito da revolta e fecham a sete chaves os valores sociais e de cidadania que que deveriam hastear. Medo, ignorância, iliteracia: são estes os ingredientes que o povo vive - muitas vezes desconhecendo-os. E de tal forma drogadas e estupidificados se encontram (com todo o tipo de programas que não deveriam interessar a alguém), que abrem a porta a todo o tipo de ignomínia; aceitam placidamente as decisões absurdas que os sugam até à medula e adormecem em frente a um rectângulo, depois de ingerirem sangue, assassinatos, mortes gratuitas, sensacionalismos absurdos, traições, mesquinhices, palavrões e irrealidades. No limbo ficam os sentimentos belos, a calma e a revolta, a dor verdadeira (que deveria ser apaziguada, jamais banalizada), os sonhos, as decisões justas, o conhecimento, as discussões saudáveis e participadas. Embrutece-se as gentes. E é de tal forma o embrutecimento que já não sabem ler nas entrelinhas, ou talvez não queiram, porque será sempre mais fácil calar a dor e a revolta com o egoísmo de se julgar que "com o mal dos outros se pode bem". E fica o olfacto toldado pela imagem inodora e as sinapses devolvem - sob a forma de arco-íris - a falsa ilusão de que o cheiro a podre desaparecerá, quando o chão for lavado, por outro qualquer, porque não está à minha porta. Até lá borrife-se o ambiente com cheiro a falsas rosas.