sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Campo Grande

Estendido naquele banco
Costumava haver um homem velho
Sozinho a fumar cigarros velhos 
Já sem tempo p’ra sonhar…

Reconhecendo-se na sua sombra
Delirante via a vida a passar…
Tal qual guardião do seu bairro
Feito príncipe daquele jardim…


De tabaco plantado 

Tingindo-lhe as pontas dos dedos
Mais a alma de tanto tempo esperar…

A cada passa na beata
Recordava histórias há muito esquecidas
De tempos dourados de outrora
Mais infinitas alegrias, e… ah como ele ria...

Artigos e decretos-lei de outras vidas
Processos de tantas causas defendidas
Entre gargalhadas loucas de agonia…
Que o filtro há muito lhe depurara a dita

Ali estava deitado dia após dia...
Ao mesmo tempo que seu corpo queimava
O pouco tempo que ainda lhe restava
Um tempo sem tempo de vida vazia

Tão menos lhe importava se o vício o matava…
Há muito que aquele homem esquecera a idade
Desde que a morte lhe entrou em casa
Um dia sem ser convidada

E a cada cigarro fumado
Gravando a fogo e a alcatrão aquela data
Estendido naquele banco com aquele homem
Dormia à noite um coração abandonado…

… /…



Natal na pastelaria

O Natal está a chegar!
Todos os anos ele chega, por esta altura, embora insistam em fazê-lo chegar, a cada ano, mais cedo.
Sente-se! Cheira-se! No ar, na rua, nas pessoas, de maneiras diferentes, todas elas notáveis, o que faz do Natal único para cada um de nós. Uma época curiosa, também.
Aqui estou, sentado, na pastelaria onde me sento todas as manhãs a ler o jornal, ou a escrever um pouco, aproveitando ainda para comprar o pão que depois, a três, serve de arranque para mais um dia, sentados à mesa a tomar o pequeno-almoço, por entre conversas de partilha de sonhos ou de retoma de algum assunto de véspera que não foi concluído porque a minha neta Laura não deixou…
A Laura está maior e mais interventiva. A sua presença faz-se notar mais a cada dia e o pão é mesmo a dividir por três! Já nas conversas, é diferente… Intervém, participa, mas a forma recorrente de mostrar o seu descontentamento, ou opinião contrária, recai sempre no fatídico choro, ou na malfadada birra. No próximo Natal, estou certo, já será diferente…
Aqui, na pastelaria, sente-se sobremaneira o Natal, a começar pelo comportamento das pessoas ao entrarem a porta, escapando-se ao frio que faz lá fora e que por isso pede um café bem quentinho e qualquer coisa doce a condizer com a quadra.
Aqui dentro faz calor! Conversa-se muito, as pessoas cumprimentam-se e há gargalhadas no ar.
O balcão da pastelaria está diferente, repleto de iguarias. Prepara-se a bancada provisória para receber os bolos-reis e nas vitrinas encontram-se já as tão apreciadas broas castelar.
O burburinho das conversas atinge os corações e centra-se nos planos que cada um tem para a noite da sua consoada.
As senhoras falam dos hábitos familiares e das tradições das terras dos seus antepassados. Usos e costumes ancestrais! Contam pelos dedos o número de familiares que cada uma conseguirá reunir à volta da sua mesa. As crianças são o centro das atenções. Afinal, elas são a verdadeira razão do Natal, dizem.
As mais distraídas com esta coisa do Natal, entusiasmam-se, também, com a conversa e, por vezes, ouve-se ao balcão:
- Ó menina, pague-se aqui, que tenho ainda a árvore de Natal para fazer, mais o musgo que não sei onde vou encontrar!?... Isto não é vida p’ra mim, estar aqui a tagarelar!... – diz, enquanto me pisca o olho.
- Já vou!... – é a resposta mais habitual, dada por cada uma das moças atrás do balcão, ao mesmo tempo que atendem mais um cliente e embrulham meia dúzia de broas, para experimentarem lá em casa, em jeito de teste e assim aprovarem, ou não, a encomenda de maior quantidade, nas vésperas, quando o Natal estiver à porta.
As luzinhas e as estrelas dão o toque decorativo à pastelaria.
Ninguém lhes presta muita atenção, mas sentem-se e Natal sem luzinhas, não é Natal!
O cheiro no interior da pastelaria é diferente, por estes dias. O da massa do bolo-rei, então, é inconfundível! Imperdível!...
Também as meninas, sempre simpáticas, são tomadas pelo espirito do Natal.
Riem mais do que o habitual, falam mais alto, brincam e entusiasmam a clientela. Todas elas bonitas, colocam um sorriso na boca de todos, ao sair da porta. Amanhã voltarão, com certeza.
O Natal não tarda aí e o Santuário de Nossa Senhora da Atalaia, na noite de Natal, quando todos se forem deitar, vai estar iluminado, como todos os anos.
E a Senhora da Atalaia vai rezar por cada uma das pessoas que habita em seu redor. Mesmo por aquelas menos crentes, ou tão só por aquelas que este ano creem não ter motivos para o celebrar.
Ela tratará de lhes recordar que o Natal, ainda que triste, sente-se… que o Natal são as pessoas e que o seu espírito vive dentro de cada um.
Preparo-me para sair da pastelaria. Já paguei o pão e o café que bebi. Também eu tenho direito a um sorriso, que retribuo.
Embora volte cá mais vezes enquanto o dia não chega, ao por o pé fora da porta, ouço uma última voz que me diz:
- Feliz Natal!...
- Feliz Natal, também!... – vou ainda a tempo de retorquir.

... /…

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Naufrágio

Falar ao teu ouvido          
Tem qualquer coisa de magia…
Solta-se a língua que ensaia danças húmidas dentro da tua orelha
Enquanto o coração esgota a corda até pasmar…
Nessa tua orelha perco-me às voltas
Ao mesmo tempo que as minhas mãos viajam por ti
Descobrindo rotas de seda na tua pele
Provocando ondas de desejo que se espraiam
Na enseada improvisada que é o teu ventre…
Nessa praia quero descansar
Feliz por ter sobrevivido ao naufrágio provocado pela agitação do teu corpo salgado…
Quero encostar os meus lábios e beber das algas o iodo que me ajudará a resistir
À fúria desse teu mar interior
Tranquilizando a minha boca de inferno
Ardente como nunca…
Deitada de encontro a mim passar-me-ás então todos os códigos de navegação
Registados em manuais, mapas e cartas de navegação ainda por inventar…
Dar-me-ás a conhecer portos de abrigo
Onde eu, feito marinheiro sem navio, jurarei um dia ancorar
Contrariando toda a arte de marear
Inventando novas rotas, marés e criativas formas de atracar…
Juntos cruzaremos as profundezas dos mares e oceanos gelados
Águas calientes povoadas de tubarões ávidos por nos provarem o sangue
Cardumes de peixes esfomeados que nos perseguirão
À espera de serem convidados para a festa final
E assim se saciarem com o lastro da nossa loucura de amor
De volta ao teu ouvido é tempo de me escutares…
De esqueceres por momentos o medo que sempre tiveste do mar
E que insistes em não perder…
Vá lá, enche o teu peito de ar e mergulha
Abre os braços e rasga as ondas…
Deixa que a água entre em ti e a química da mistura dos elementos aconteça…
Quando isso acontecer é sinal que a minha língua há muito largou a dança na tua orelha…
Sem teres dado por isso estarei já todo dentro de ti
Afinal teremos sido feitos um para o outro e as tempestades dos mares do desejo
Foram sempre a nossa praia…

… /… 

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Domingo

Os lábios tremeram, sim…
As mãos ficaram geladas
De repente, a barrigas ficou do tamanho de uma noz
As pernas fraquejaram entre as coxas e os joelhos
Esgotou-se o pensamento…
A noite passada mais pareceu ser de dia
E o sono não nos visitou
Fez sol durante o dia, mas muito frio também…
Tudo isto vezes três...
Hoje foi difícil…
Cada um de nós trouxe o coração atado
Apertado contra as costas
E as pontas das cordas deram um nó na garganta
O sangue afluiu a cada uma das células dos nossos cérebros
Os quais pareciam querer estoirar
Tantas foram as voltas que deram à imaginação
Os nossos corpos permaneceram gelados, tal qual as mãos
E essas, rezaram postas...
Mesmo sem nos lembrarmos duma só oração a propósito.
Finalmente correu tudo bem…

… /…

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Tatuagens

Rasga-me e vê o que nunca viste porquanto me ignoraste
Quando passaste por mim…
Vais ver que vais sentir-te melhor...
Tenho tantas coisas escritas em cadernos de linhas
Que são as minhas...
Mas nunca os folheio, porque a coragem escapa-se-me por entre os dedos…
Por isso, vá, tenta rasgar-me
Desfolha-me página a página e lambe a tinta que me manchou
Cheira as folhas e bebe-lhes o perfume das palavras
Cada uma é diferente da outra e todas juntas compõem o livro que sou eu 
Mas que nunca me escrevi... 
E que por isso nunca me leste...
Será ele a inspiração para o meu requiem, quando o final dos meus dias chegar
Nele te reverás…
Rasga cada folha e dá-te a provar um pouco das minhas angústias, pedaços de ti
Apenas para lhes sentires o gosto...
Depois, enfia-me os papéis na boca e lambe-me os cantos, se vires que há tinta a escorrer
Quando começar a regurgitar o veneno que te dediquei em vida
Empurra-mo de novo para dentro, até sufocar…
Quando te sentires cansada e os meus olhos já não te encontrarem, chegou a hora
Deixa-me ficar assim, com a tinta a escorrer-me pelo queixo
Não haverá nada mais a fazer…
Momento sublime, esse…
Depois de nunca te ter tido verdadeiramente em vida
Morrerei com uma overdose de ti
E se ainda assim sobrarem algumas folhas, queima-as por favor
Com as cinzas, faz-me pinturas no corpo
Pinturas de uma guerra perdida...
Tatuagens de ti…

... /...

Esta ansiedade...

Hoje vou vê-la…
Sei que será apenas por alguns minutos, mas vou vê-la. Parecerá uma eternidade, eu sei…
Tenho de ser forte.
Há três noites que não durmo e o coração bate intensamente de cada vez que fecho os olhos e sonho com ela…
Pensava eu que ao fim de tanto tempo seria impossível sentir tudo isto, desta forma tão arrebatadora. Sei que vou tremer, transpirar…
Por momentos, desejo que, até lá, o tempo passe depressa, tal é a minha ansiedade.
Depois acalmo-me, racionalizo e julgo que melhor seria que o reencontro não se desse. Assim sendo, o sofrimento continuaria por mais tempo e o desejo do reencontro tornar-se-ia mais forte. Aí sim, talvez suplicasse para que ele se desse!...
A hora está a aproximar-se… Olho uma vez mais para o relógio. Ainda vou a tempo de não aparecer. A tempo de evitar o momento…
Quando ele acontecer, sei que vou ficar imóvel, os olhos fixos, as pernas trémulas, o coração acelerado.
Quando se aproximar de mim, rendo-me, nada a fazer…
E quando a sentir perto da minha boca, entrego-me a Deus e seja o que Ele quiser!...
Só ele sabe o medo que tenho da broca, quando vou ao dentista!...

… /…

domingo, 17 de novembro de 2013

Resto zero

Mais tarde, quando um dia todos deixarmos de existir, será que o vazio deixado por alguns de nós refletirá o equivalente espaço que ocupámos em vida?
Será que a energia emanada por cada um de nós permitirá que, aquando da nossa ausência futura, seja possível haver uma real perceção desse mesmo espaço, bem como poderá alguém calculá-lo?
Quem dera, podermos afirmar com precisão matemática o que cada um foi verdadeiramente, o espaço que ocupou e qual a justa ressonância da sua passagem por esta vida.
A existir uma fórmula, ela deveria ser simples, as variáveis objetivas e o resultado lógico.
O que fomos, o que fizemos, como fomos, como fizemos, a quem nos demos e novamente como, o que projetámos para além de nós, visível, como que um reflexo deixado na vida que existirá quando já nenhum de nós existir.
As heranças são relativas. O materialismo existencial é ridículo e reduz-se a pó…
Restarão, pois, as emoções, os sentimentos, os afetos, as memórias dos mesmos e a vontade infinita de se poder inventar um seu medidor exato, apto a procurar no espaço ocupado por cada um de nós, em vida, o essencial de cada uma das nossas existências.
Depois de concluído o exercício, deveríamos estar preparados para ensaiarmos uma nova peça, dando a conhecer a nossa verdadeira dimensão.
No final, todos aplaudiriam de pé, porque o resultado obtido teria como base a mais nobre de todas as fórmulas: a verdade! Ao que demos, subtraía-se o que recebemos, sendo que o resto daria zero!

… /…

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Palete

Perdoem-me os mais céticos se acaso um dia
Possa ter vacilado ao olhar o futuro
Mas a dor que eu trazia, essa triste agonia
Velava meu mundo de negro e cinza escuro

Com hermética forma, por carvão riscada
Era a minha pintura privada de luz
Gente embuçada, vestindo manto, e capuz
Paisagens em tons de terra sena queimada

E eis que nasceu aquela que tudo mudou  
Colorindo a palete com que eu vinha pintando                                                      
Diferente de todas, uma mágica cor

Pigmentada com tom e luz que me cegou
Hoje orquestra de cor no meu peito tocando
Arco-íris de Laura, meu maior Amor

… /…

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Hoje não fui à rua

Hoje não fui à rua
Hoje estava frio e não me apeteceu

Amanhã talvez vá
Mesmo que chova

Amanhã é outro dia
E depois outro virá
E outro e outro

O frio passará, a chuva também
E eu acabarei por sair

Não é o frio nem a chuva
Que me impedem de sair à rua
Saio se me apetecer

Hoje não fui à rua
Hoje estava frio e não me apeteceu

… /…

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

Lisboa a duas cores

Naquele tempo, Lisboa era mais cinzenta, mas era mais verde também.
As pessoas vestiam poucas cores e as fardas, eram quase todas cinzentas. Naquele tempo havia muitas fardas!
Dentro das casas das pessoas, daquelas que tinham televisão, Lisboa era, para algumas, pura imaginação, uma vez que só raramente, ou até mesmo nunca, tinham tido a oportunidade de a visitar. E era uma imagem a preto e branco, a que viam e sonhavam, em tons de cinzento, também.
E as vidas de muitas dessas pessoas eram cinzentas também e, por vezes, muito escuras.
E então, lá aparecia o verde! Imaginavam-no, ao verem as imagens cinzentas…
Mais jardins em vez de prédios, mais árvores em vez de estacionamentos e os velhinhos autocarros verdes da Carris que em Lisboa se passeavam, no alto dos seus primeiros andares. Também os táxis, com as suas “copas” verdes, enchiam o Rossio de cor.
A mata de Monsanto, muito verde, era a floresta negra de Lisboa, quase impenetrável.
À noite, nela, a vida era agitada e cinzenta também…
Outra vez o verde e o cinzento… em Monsanto, com tons muito escuros.

... /...

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Aula de Português

Quando atravessei o portão do colégio e dei contigo ali em pé a olhar para mim, desejei, não sei porquê, que fôssemos colegas de turma.
E assim aconteceu!
Ouvi o primeiro toque e sentei-me na sala de aula, à tua espera.
Olhei em redor e não te vi! Que pena…
Só depois soou o segundo toque, exatamente no momento em que rompeste pela porta da sala de aula!...
- Bom dia, Stôr - disseste
Aí sim, a sala ficou completa. O professor abriu o livro de ponto, fez a chamada, a aula de Português começou e a nossa história também.

… /…

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Ida ao cinema

Duas fortes emoções num só dia…
A primeira ida ao cinema e logo num carro que, juntamente com o Mini, preenchia o meu imaginário em criança, o Fiat 600!
Recordo-o como se fosse hoje, branquinho, com os bancos estofados em pele encarnada e os topos das costas em branco. O volante grande, feito de massa cinzenta, e as portas que abriam no sentido inverso, da frente para trás, conferiam-lhe o ar retro.
Depois do motor pegar e enquanto não aquecia bem, o carro estremecia num permanente engasgo. Já quente, por vezes de mais, havia a necessidade de abrir a tampa que o resguardava, na traseira, para que pudesse arrefecer mais facilmente.
Naquele dia, tudo era emoção!
Eu e o meu irmão íamos ao cinema S. José, em Sacavém, ver os Flinstones com a nossa amiga, quase irmã, Ilda, acompanhados pelo seu pai, o Sr. António, amigo para toda a vida e figura tão presente na minha adolescência.
Recordo que talvez tenha sido a primeira vez que saímos sem a presença dos nossos pais, tal era a confiança que depositavam no Sr. António! O meu irmão deveria ter cinco anos e eu três.
E lá fomos, felizes como nunca…
O Sr. António estacionou o velhinho Fiat 600 ao fundo da rua do cinema, a caminho da Fábrica da Loiça de Sacavém que vivia anos de próspera produção.
A mãe da Ilda, a Dna. Marília, era lá que trabalhava e a loiça de Sacavém fazia parte do nosso quotidiano. De vez em quando trazia-nos uma ou outra peça curiosa. As casas mealheiros foram disso um exemplo, talvez o melhor. Ainda hoje lembro que uma e outra tinham o nosso nome, “Vivenda Nuno André” e “Vivenda João Rafael”, além da inscrição “Junte aqui na casinha que junta para si. Quanto mais juntar mais há-de encontrar”.
Hoje, a fábrica já não existe, a loiça também não, o meu mealheiro partiu-se e Sacavém é a localidade do meu dentista, filho do dentista de família de então, meu dentista também, até me tornar adulto.
Quarenta e cinco anos depois, encontro-me exactamente aqui no seu consultório, que fica mesmo em frente ao cinema S. José e não posso deixar de sentir uma certa nostalgia, razão destas memórias tão vivas.
Ali, no outro lado da rua, eu e o meu irmão, há quarenta e cinco anos, vivemos um dos dias mais emocionantes das nossas vidas, até então.
E a memória mais doce é a que guardo já de dentro da grande sala, quando o meu irmão ao ver o écran, novidade para nós, me disse baixinho ao ouvido, “agora vem um senhor ao palco rodar o botão e acender a televisão gigante…”. Eu acreditei. Aliás, o que o meu irmão dizia era para mim sagrado.
Depois, foi só rir com os Flinstones!
Não me lembro de mais nada que se tenha passado nesse dia, a não ser que a fila dos prédios onde é hoje o consultório do Dr. Tobias, filho, nem sequer existia. No seu lugar, havia uma enorme ribanceira que separava Sacavém de cima de Sacavém de baixo e que o Fiat 600 ficou estacionado mesmo à sua beirinha, o que me meteu medo.
Algum tempo depois, o Sr. António vendeu o Fiat 600 e comprou um Vauxhall Victor, cinzento-escuro e nós continuámos a crescer e a ir mais vezes ao cinema.

… /…





Sem sono

À noite quando me deito
Olho o quarto à minha volta
Já estendido no meu leito
Deixo o meu coração à solta

Preparo-me p’ra sonhar
Antes mesmo de dormir
Ninguém me pode obrigar
A do sono não fugir

Dormir p’ra mim é castigo
Bem pior que um açoite
Já sonhar se for contigo
Bom que seja toda a noite

E se o sono não chegar
Fica a noite bem melhor
Penso em ti sem me cansar
Toda a noite faço amor

Sei que no dia seguinte
Continua o meu sofrer
Que o coração dum pedinte
Faz do sonho o seu viver

… /…

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Separação

A vida é mesmo assim…
Ainda ontem vivia a alegria de ter reencontrado amigos de há anos
Hoje a dor da separação
Com a fé de que voltaremos a encontrar-nos um dia
Acaso eu mereça o mesmo destino
O destino dos bons…
Uma amiga especial partiu…
E o mar do Meco jamais será igual…
As noites confundir-se-ão umas com as outras
E a estrada de Alfarim parecerá sempre mais longe e mais longa
As raízes das árvores por debaixo do alcatrão
Serão mais notadas do que sempre foram
Porque serão ainda mais fortes…
Mas a chegada, essa será mais triste…
É sempre assim…
Um dia tudo fica tão diferente…
E sentimos um vazio que não conseguimos interpretar
Mas que nos tolhe, amarra
Um pequeno sufoco permanente…
Hoje, aqui, com esta brisa fresca que me beija
E me traz o doce cumprimento da despedida
A cada virar do rosto, a cada lance do olhar
Revisito momentos (e são tantos) que fizeram de alguns dias da minha vida
A razão de os ter suportado…
Naquele local fui tantas vezes feliz
Outras nem tanto…
Mas o brilho e o sorriso daqueles olhos verdes
Viverão comigo para sempre
Em Alfarim revisitarei sempre a amizade
E o desejo dos reencontros
No adeus tantas vezes acenado por detrás do portão…
O quintal dos sonhos e o pequeno anexo ao pé do poço
Guardarão ad eternum memórias profundas que vivem comigo
As mesmas memórias do riso emprestado às conversas
Durante anos de amizade sincera…
Ontem, ao percorrer a estrada de Alfarim
Senti cada salto provocado pelas raízes das árvores por debaixo do alcatrão
Cada uma delas foi como que uma lágrima sentida
A cada quilómetro, a cada lágrima, foram cada vez menos as de tristeza
E em maior número as de alegria…
Na igreja, ao final da estrada, deu-se o reencontro
Com a tranquila sensação de que ambos chegámos a casa…

… /…

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Reencontro

O reencontro com um amigo
É tão bom quanto o é connosco próprios
O passado, durante o qual o silêncio feito ruído
Susteve o coração, ainda que vivo, num torpor latente,
Na espera ansiosa do dia marcado para tal,
Torna a ganhar verdadeiro sentido…

Sempre que o reencontro se dá
a vida completa um novo ciclo retomando assim o alento,
Conectando de novo aqueles que se julgavam já perdidos.
Um amigo tem esse dom...
Um amigo ajuda a reunir pedaços de nós esquecidos lá atrás
Pedaços que quando recuperados, nos fazem sentir o quão, afinal, estiveram tão bem guardados.
Ainda bem que assim é…

Histórias e momentos já esquecidos, outros a perderem-se de vista,
bastando no entanto apenas pegá-los, assumindo-os como nossos.
É que um amigo guarda-os como se eles sejam seus também
Como que o fruto caído no chão, pisado, conspurcado,
seja apanhado e devolvido com mãos puras,
Viçoso e suculento, devido apenas a esse contacto
Fazendo com que a boca ávida o receba com redobrada sofreguidão…

O reencontro com um amigo
Deixa-nos felizes a olhar para as estrelas
Em vez do ruído do silêncio, ouve-se a melodia do novo
O vazio que se deseja preencher e partilhar,
A distância que nunca existiu
E a certeza de que a amizade nunca se perdeu…


sexta-feira, 1 de novembro de 2013

A minha cidade

Para mim, existem diferentes tipos de memórias, as reais, as quase reais e as que eu imagino que são reais…
Nelas viajo há quase cinquenta anos.
Foram elas que, ao longo dos anos, criaram e reforçaram os alicerces do mundo que é o meu, onde eu, feito arquiteto e pedreiro, construí a minha cidade.
Nela existem construções, umas que se ergueram a um ritmo incrível, outras que ruíram faz algum tempo, outras ainda que não passaram de projetos bonitos, permanentemente adiáveis.
Na minha cidade existem rios, pontes, caminhos, escolas e jardins. Nas escolas e nos jardins há crianças, todas elas felizes. As pontes e os caminhos estão repletos de gente que se encontra, sorri e abraça.
Nos rios, corre a água… a água que tudo lava e que, suavemente, transporta todo o tipo de memórias, as reais, as quase reais e as que eu imagino que são reais.
Por fim, elas misturam-se e desaguam na foz do mar das lembranças e do esquecimento, também.
Importa apenas que sejam memórias, porque reais ou não, pouco interessa… Importante é que tenhamos sempre do que nos lembrar, nem que apenas seja dos sonhos que sonhámos um dia.

… /…

Despertar

Às vezes não sinto os dedos de tanto escrever
Invento caligrafias como se a cada nova palavra descobrisse alguém que nunca li
A alma do poeta hoje acordou cedo e já sentida
Reflexo do sonho complexo da madrugada
Noites e noites de sonos vazios e sonhos ausentes
Despertares de angústia às mãos daqueles que manipulam a vida
E dela fazem ridículos espetáculos de pantomimas
A noite inspira o melhor e o pior de cada um…
Quando o sonho me visita, no escuro do meu quarto
Esboço expressões que nem eu conheço
Cada uma delas refletindo uma personagem desconhecida que atuará no dia seguinte
Sem guião e por isso sem saber qual o papel que lhe cabe…
A vida e os seus improvisos…
Por isso tento passar para a folha de papel
Os sinais que a madrugada deixou em mim, o que me confunde por vezes
Já que os sonhos não têm tempo
Às vezes não sinto os dedos de tanto escrever
Invento histórias que juraria ter vivido
E sonhos acabados de ter sonhado
Confundo a vida com os sonhos e com os sonos e fico esgotado
As caligrafias não têm a beleza de antes…
Mecanizaram-se e as palavras banalizaram-se e esconderam-se
Em dicionários amorfos que já ninguém folheia
Porque deixaram de ter significado(s)…
O tempo dos sonhos já lá vai…
Ficou o sono…
De vez em quando, o sonho dá sinal, pela madrugada
Aí, o poeta acorda, pega nas mãos, na caneta e na alma
E escreve, escreve, escreve tanto… até lhe doer nos dedos
A dor que lhe vai na alma, depois…
Depois, adormece e volta a tombar no sono vazio que o guiará até à morte

… /…