terça-feira, 7 de outubro de 2014

Concerto intimista

Oiço esta música pela enésima vez…
Aqui em cima, no beiral do murete do meu terraço, a água acumula-se, forma gotas, as quais, uma a uma, grossas, gordas, caem em câmara lenta três pisos abaixo, sendo percetível o ruído que fazem ao rebentarem no chão.
A música emociona-me e comparo as gotas de água a lágrimas choradas num qualquer terceiro piso, num qualquer apartamento com histórias para contar…
Recordo um desses lugares. Nele, havia também o som de um violoncelo, como fundo.
Deixo-me transportar no tempo e vou para muito longe daqui.
Uma rapariga, sentada, de pele muito branca e dedos nodosos, com uma aliança muito fina num dos dedos da mão esquerda, abraça o violoncelo com o braço direito e, com o outro afaga as cordas, deslizando os dedos esguios, elegantes, o que lhes deixa marcas profundas.
As pernas saem-lhe fora da cadeira, uma para cada lado.
A perna esquerda, fletida, é permanentemente posta à prova, uma vez que recebe toda a inclinação, força e peso do seu corpo, sustendo ainda o instrumento recostado entre os seus braços.
O pé esquerdo, toca o chão, pressionando a ponta dos dedos, fazendo-se notar os tendões e veias no peito do pé, enquanto o calcanhar é de uma subtileza extrema, elevado a dez centímetros do chão…
A perna direita, alongada, afasta-se da cadeira. O pé, duma beleza estética incrível, toca o chão apenas com o polegar. Pé e perna, desenham uma linha que, ao tocar uma outra , traçada pela inclinação do braço do violoncelo, forma um ângulo obtuso.
O seu braço esquerdo ensaia movimentos belos e o arco é a extensão do que lhe vai na alma.
Umas vezes mergulha-o nas cordas, outras desliza-o nelas, como que patinasse, outras, ainda, fá-lo voar, para depois aterrar nelas com o souplesse de uma pena, ou a violência de um raio que rasga o mar, revolto, em tempestade.
Há já muito que a rapariga colou os seus olhos aos meus e a brancura da sua pele contrasta com o negro dos olhos repletos de sombra esborratada. Há lágrimas a correrem pela sua face, deixando marcas que mais parecem pautas desenhadas na vertical!...
A melodia é estonteante.
Está nua e os sons que tira do violoncelo parecem sair do seu interior, como se de um exorcismo se tratasse…
A elegância da silhueta do seu corpo confunde-se com a beleza das linhas ondulantes do violoncelo, apenas atraiçoada pelo espigão ereto, cravado no chão.
Não resisto a tão bela imagem e vejo-me nos seus braços, feito seu instrumento, tal o prazer que ambos retiramos do momento.
Abraçamo-nos apertados e a melodia sai dos nossos corpos.
E quanto mais nos abraçamos, mais forte ela é, preparando o grande final…
É então que reparo… 
Oh!... Deixou de chover cá fora e as gotas de água no beiral do murete do terraço são agora em menor número, caindo mais espaçadamente lá em baixo.
Aqui em cima, no terraço, dou por mim todo molhado e regresso ao interior da casa. 
O disco chegou ao fim, continuando, no entanto a rodar… Por vezes também assim o é, com a vida.
Empurro o braço do gira-discos até ao centro do disco, para o desligar.
Volto, de imediato, a puxá-lo para trás. Faço girar de novo o prato do gira-discos e poiso a agulha no vinil.
Aí vou eu outra vez, desta vez sem chuva, nem lembranças de lágrimas.

… /…


2 comentários:

Anônimo disse...

Ah chuva abençoada!

a_ciganita disse...

O poder da música a despertar os sentidos sob a forma de sentires vários. Tão bom o enlace das notas nas gotas de chuva. E que bem descrita a tua visão. Por vezes é bom sentirmos a chuva em nós.