segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ainda a tempo... Rolex's e outros roubos...

Há histórias que não se esquecem. Há pessoas que nos marcam e que só por elas existirem é que continuamos a acreditar que ainda vale a pena...


Com a boca a saber a café queimado, quente, pousei o cotovelo sobre a mesa e, com a mão esquerda, amparei a testa, enquanto fechava os olhos.
Tentei concentrar-me mas havia qualquer coisa que estava a deixar-me inquieto.
Abri os olhos e percebi que a pilha de pratos com restos de côdeas de pão torrado e guardanapos de papel amarrotados, húmidos da gordura da manteiga, molhados, cor de café com leite, irritava-me.
Levantei-me, depositei tudo em cima do balcão e regressei à mesa. Agora sim, pude concentrar-me.
Ali estou todos os dias, pela manhã, senão, quase todos.
Dali, daquele lugar onde me sento, tem saído muita da escrita que faço e que me mantém mais ou menos tranquilo, assim é desde que estou desempregado.
Só que às vezes é tudo muito estranho…
Fecho os olhos e penso nas voltas que a vida dá.
- Tio, como é que é possível teres sido tanta coisa, diretor de marketing, product manager, diretor comercial, coordenado equipas de vendas, teres recrutado gente, sem seres licenciado? – perguntou-me um dia a minha sobrinha afilhada.
- Olha, talvez tenha sido pelo trabalho!?... – respondi-lhe
Acho que sim. Só pode ter sido… Na verdade, o trabalho foi sempre muito importante para mim, desde bem novo, ainda estudante.
Tão importante que adiei por quase trinta anos aquilo que hoje verdadeiro prazer me dá, pintar e escrever.
Não, que não o tenha feito ao longo deste tempo, mas sempre a correr… Sempre a fingir…
Muitas vezes questiono-me sobre o porquê de não ter perseguido os meus sonhos. A resposta é fácil, igualzinha à de então; precisava de ganhar dinheiro. Era importante!...
E, naquele tempo, tinha tanto para dar, sangue novo, arterial, bem oxigenado, embora fumasse. E não faltaram tubarões, vampiros e parasitas querendo aproveitá-lo. E assim foi, todos se saciaram.
O trabalho via-se. Hoje, mais do que então, estou certo disso.
Mas enquanto foi possível aproveitar-me das conjunturas, não o fiz e, em vez disso, continuei a fazer o que melhor sabia, trabalhar.
Campanhas e mais campanhas; marketing e publicidade; agências e ateliês; budgets e orçamentos; literaturas, folhetos e trípticos; estudos e formações; entrevistas e recrutamentos, avaliações, promoções e despedimentos; reuniões e apresentações; objetivos e comissões; alegrias e deceções; discursos, discussões e muitas, muitas decisões; manuais, testes, conferências, congressos, cursos, exposições; crescimentos, vendas, quotas de sucesso, prémios, viagens e ilusões…
Certo dia, bem cedo, cerca das 08h30, estava já eu sentado à secretária, no meu gabinete, naquele quarto andar da Marquês de Tomar, à Duque d’Ávila, quando tocou o telefone.
Importa referir que nesse dia daríamos início a uma das reuniões de vendas nacionais, pelo que ultimava a apresentação de slides que iria fazer, falando de resultados e apresentando novas estratégias e materiais promocionais. Tinha 26 anos, trabalhava na Cilag-Medicamenta, uma companhia Johnson & Johnson e era product manager de Pevaryl, Gyno Pevaryl e Gyne-T. Pela sugestão dos nomes, cabia-me a responsabilidade da área de produtos de Ginecologia. Era feliz!...
Já no dia anterior, nós, os product managers mais novos, eu e a Teresa, juntamente com o Zé Carlos, que nos ajudou bastante na fase inicial que passámos no departamento de marketing, tínhamos ficado até mais tarde na empresa, uma vez que, naquele tempo, só havia uma sala de computadores e, claro está, porque os mais velhos ocupavam-na durante o dia, não restava aos mais novos senão fazerem serão, isto, se queriam ver o seu trabalho concluído a tempo e horas. Foi o que fiz. Acabaram todos por sair e eu fui ficando, até me perder no tempo. Passava já da meia-noite, quando fui para casa.
Dizia eu que, naquela manhã, o telefone tocou no meu gabinete, por volta das 08h30.
Atendi e ouvi do outro lado da linha:
- Bom dia João, pode vir aqui, no meu gabinete? Por favor…
O Sr. Luís Cupello era o diretor comercial da companhia embora, salvo o devido respeito pelo diretor geral, o Sr. Gray, um verdadeiro scottish gentleman, fosse reconhecido por todos como sendo a inspiração daquela empresa, sobrepondo-se o seu carisma ao do diretor geral. Assim era, logicamente.
Subi, nervoso.
O gabinete do Sr. Cupello era no quinto andar, juntamente com o do Sr. Gray e do Dr. Figueiredo, o diretor financeiro.
O andar tinha uma decoração diferente dos demais. Teto falso, em madeira e paredes cobertas de madeira, também, com alguns espelhos, como elementos decorativos.
A luz era ténue, o que inspirava algum respeito.
Assim que se saía o elevador, ali estavam, à esquerda, em frente e, à direita, o do Sr. Cupello,  seguido dos das secretárias de cada um.
Dirigi-me ao gabinete do Sr. Cupello que me abriu a porta de imediato, estendeu-me a mão num cumprimento afável, mandando-me entrar e sentar, enquanto arrumava umas pastas, gesto habitual seu, que quase parecia ensaiado.
Estava com um sorriso malandro no rosto e com um cigarro na mão esquerda. Finalmente, sentou-se à secretária, na minha frente. Recostou-se um pouco entre os braços da sua poltrona de cabedal, pousou o cigarro no cinzeiro, de imediato passou a mão esquerda no cabelo, levando a franja de risco ao meio, da frente para trás e desabafou:
- Joãoziiiinho… Trabalhando até tarde!...
Naquele momento, fiquei sem saber o que dizer. Nem sequer estava a perceber o porquê de tal abordagem. Teria eu feito alguma coisa de errado!?... Que eu soubesse, trabalhar não fazia nenhum mal!?... Como sabia? Quem lhe teria comentado?... Eram tantas as questões a povoarem-me a mente.
- Ontem fui ao cinema. Passei já tarde, aqui na avenida, olhei, vi luz e um vulto no primeiro andar. – explicou – Hoje, o Sr. Lopes, disse que foi você que esteve trabalhando até tarde.
O Sr. Lopes era o porteiro e habitava no rés-do-chão do edifício. Foi ele quem fechou a porta à chave, quando eu saí.
Será que a imagem passada era a do "engraxador" que fica a trabalhar até tarde, só para ser comentado pelos outros!?... Não, não podia ser! Situações de trabalho fora de horas aconteciam frequentemente e não eram só comigo!?... Então!?... Questões parvas, próprias da insegurança da idade.
- Sr. Cupello, acontece que só existem dois computadores onde podemos trabalhar os slides em Harvard Graphics e… - tentei explicar, sem sucesso. Fui interrompido.
- João, deixa eu contar uma história p’ra você… Havia um cara no Brasil que trabalhou sessenta anos numa empresa!... Você imagina o que isso é?... Isso é uma vida, viu!?... Aí, um dia, eles reformaram o cara. Cara honesto, dedicado, trabalhador, assíduo, sem nunca ter faltado uma única vez ao seu dever… - falava enquanto obrigava o seu isqueiro Dupont a rodar, apertado por  entre os dedos médio e polegar da mão direita, batendo-o na secretária, a cada quarto de rotação. A mão esquerda penteava o cabelo de quando em vez, um tique seu – Resolveram, então, fazer um jantar de despedida, em jeito de homenagem, num bom restaurante do Rio de Janeiro, com Copacabana a perder de vista. – continuou – Todo o mundo compareceu, todo o mundo comeu e bebeu e chegada a hora dos discursos, ofereceram-lhe um relógio todo em ouro!... Um Rolex, ou coisa assim. Imagina só, um relógio todo em ouro!... O cara chorou de alegria. Puxa, tinha valido a pena!...
Eu estava entusiasmado com a história. Parecia começar a entender a oportunidade da mesma e, a cada desenvolvimento, estava mais ansioso pelo seu final. O Sr. Cupello continuou:
- A noite ia longa e, pouco a pouco, todo o mundo foi-se retirando e o cara foi ficando, até restar sozinho no restaurante, juntamente com os empregados. Já tarde, tiveram de fechar as portas e o cara regressou a casa tranquilo, com a sensação do dever cumprido.
Até ali, tudo bem… Sensação do dever cumprido, altas horas da noite, tinha tudo a ver… Claro que sentia que havia muito mais por detrás daquela história mas, não queria sequer atrever-me a desvendá-la antecipadamente. Como estava a ser bom ouvi-la, contada por aquela pessoa com quem tanto aprendia todos os dias.
- E aí, João, aconteceu o inesperado. Já perto de casa, encantado com a noite perfeita que tinha vivido, selando o ciclo que fora sua vida de trabalho… - fez-se silêncio enquanto pegou no telefone – Ana, por favor, pede um cafezinho para mim. João, você toma?
- Obrigado, Sr. Cupello, já tomei. – não me atrevia naquele momento a segurar uma chávena que fosse.
- Do nada, apareceram dois moleques, assim, pequenininhos – fez o gesto com a mão fechada, os dedos unidos e esticados, com a palma virada para baixo, sensivelmente a um metro do chão – empurraram ele, lhe bateram e roubaram o relógio,!... Imagina só, João, o prejuízo!... Imagina o azar do cara!... Você já imaginou, João!?...
Fiquei estupefacto. Que história! Que azar!... Resolvi comentar:
- Realmente… Imagino… Pois, um relógio todo em ouro, assim!?...
- Porra, garoto! Você não entendeu mesmo nada!... – disse o Sr. Cupello. Aí fez-se-me luz. Ele continuou – Qual relógio, qual ouro, João!... Porra, eles roubaram foi sessenta anos da vida do cara!... Sessenta anos, João!...
O Sr. Cupello sabia por que é que estava a contar-me aquela história e eu percebi a mensagem.
Desde então, passaram quase 25 anos.
A história do Sr. Cupello, não mais a esqueci e trabalhei sempre com vontade, mas sem nunca dela me esquecer.
Não voltei a encontrar mais ninguém como ele.
De uma coisa estou certo, trabalhei sempre com dedicação, como se ela fosse necessária para me manter sessenta anos em cada uma das empresas por onde passei.
Não foram precisos tantos para ter tido direito a jantares de despedida nas empresas por onde passei. Aconteceram mais do que uma vez, espontaneamente, organizados por colegas. Não aconteceu em todas e ainda bem.
Os jantares não são o mais importante, nem sequer o dinheiro que se ganha.
A sensação do dever cumprido sim.
É bom nunca esquecermos que há vida para além do dever.
Conforme diz o poeta, “ai que prazer não cumprir um dever”; que faz tanto sentido no dia em que nos cruzamos com alguém que não gosta de nós ou vê no nosso lugar a oportunidade de defender o seu e ou os dos seus.
Se alguma vez me senti roubado? Algumas… Se alguma vez me roubaram? Tantas…
Felizmente que não investi tudo no trabalho, nem sequer me perdi a esbanjar em Rolex’s de ouro…
À pergunta da minha sobrinha, reformulo a resposta:
- Foi certamente por causa do trabalho realizado!

… /… 

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