segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dissonâncias

" Já lá vai o tempo em que íamos em grupo para a praia, num total de 10 a 15 rapazes. Chegados ao local, procurávamos um espaço onde pudéssemos falar à vontade e dar largas ao calão, próprio da linguagem da juventude. Havia um cuidado extremo para não ferirmos quem quer que estivesse à nossa volta, sobretudo senhoras e crianças..."

- Ah puta do caralho! – gritou o miúdo irritante, fazendo jus aos seus tiques  de jovem amaricado e malcriado, no meio das suas amiguinhas deselegantes e descuidadas, pretendendo impressionar todos os que o rodeiam, com a sua rebeldia.
Preparam-se para jogar às cartas em plena esplanada, onde, pela manhã, senhoras e crianças tomam o seu pequeno-almoço, à sombra, desfrutando da relva que se estende à sua frente, sombria até meio, batida depois por um tal sol radioso, até perder de vista.
As raparigas são quatro e eles são dois. Eles estão em minoria, portanto.
Fumam todos como se nunca tivessem feito outra coisa na vida e, a cada intervalo entre uma e outra passa, descansam os cigarros na vertical, encavalitados nas pontas dos dedos de unhas roídas, com os cotovelos pousados nos braços das cadeiras da esplanada.
Energicamente, dando sinais de nervosismo próprio de quem pretende estar à altura do papel de forma convincente, sopram o fumo com tal vigor que mais parecem locomotivas a vapor, em alta combustão.
Discutem marcas de tabaco sem nunca sequer terem fumado um mata-ratos, muito menos experimentado fumar barbas de milho.  Em suma, o tabaco faz-lhes mal…
O miúdo irritante, chama-se Guedes e usa botins pelo tornozelo, debruados a peluche no rebordo do cano curto, o pobrezinho.
Pela exuberância dos gestos e tom de voz elevado que usa, enquanto debita expressões cheias de impropérios, percebe-se que gosta de se ouvir, ao mesmo tempo que denuncia sinais de insegurança e necessidades incessantes de afirmação.
- Vai-te foder! – diz o Guedes, um pouco mais alto, disposto a chocar toda a esplanada.
Leva uma sapa da coleguinha que lhe diz ser mais homem do que ele. Ele encolhe-se…
Ficam os dois contentes. Ela porque o disse, ele porque ouviu e concordou.
Pobre Guedes!...
- Foda-se! – insiste ele – Tinha a manilha seca e ela levou-ma, a puta!... – diz, zangado.
Que dissonante foi este foda-se (!?...). Ó Guedes, não havia necessidade!...
Apeteceu-me dizer-lhe, de imediato, que tivesse cuidado com a verborreia, enquanto ensaiaria o Tico Tico no Fubá, versão à estalada, no seu focinho de menino malcriado.
Está claro que, dada a áspera e desconcertante beleza harmoniosa da verve do Guedes, embelezada por gritinhos e falsetes frequentes, o dia deixou de ser o mesmo e ficou ensombrado para toda a gente ali sentada, em família ou não, sozinha ou acompanhada, não interessa, servindo para concluir que ele, o Guedes, o amigo e as amiguinhas, não prestam para nada!
Mas pronto, o que fazer? Nada!...
Xiça, que estou farto e já nem na “A Bola” me consigo concentrar, tal o discurso dissonante do “gang do Guedes”.
Olha, agora é que foi… O Guedes perdeu o jogo e uma das suas amigas engasgou-se com o fumo do cigarro.
Vou mas é aproveitar para me ir embora, que vem aí bojarda da grossa!…
E eu, que até sou de fácil entrosamento relativamente aos ambientes que me rodeiam, imbuído já no espírito da coisa, não consigo deixar de ter um pensamento a condizer; puta que pariu o Guedes!...
Isto porque não tenho a coragem de o dizer, porque, claro está, o ambiente do local não é o que o “gang do Guedes” gostaria que fosse, senão, já de saída, passaria pela sua mesa e di-lo-ia na cara, com toda a pompa e circunstância:
- Ó Guedes, vai p’ró caralho!... 

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