domingo, 28 de setembro de 2014

Questão metafísica

Como dói imaginar
A elegância do nada
A ausência desejada
A coisa por inventar

Só talvez com uma lupa
Confirmasse a metafísica
Que o espaço que a gorda ocupa
É minúsculo para a tísica

E nesta contradição
Que em meu corpo vai e vem
Vive presa, sim e não
A minha alma Zé Ninguém

... /...

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

O Brasil à distância de um corte de cabelo

Ali estava eu, na cadeira do barbeiro…
Ah desculpem, cabeleireiro, assim é que é, porque essa de barbeiro, coisa dos nossos pais e avós, foi passando de moda, com o andar dos anos.
Quando eu era pequenino, sim, o meu pai levava-me ao barbeiro.
Recordo que me sentavam numa tábua colocada sobre os braços da cadeira, assento e costas redondos, num tom verde. Depois, colocavam-me um pano gigante, azulado, preso à volta do pescoço, que quase me estrangulava, ainda mais quando os dedos do barbeiro eram grossos e desajeitados. Por fim, um alfinete-de-ama prendia o tecido.
O aspecto final era o de um santo num andor, quase…
A partir de determinada idade, passei a ir ao cabeleireiro.
Ainda pequeno, por vontade da minha mãe, recordo que o meu cabelo encaracolado, rebelde e por isso difícil de domar, foi entregue às mãos artísticas do Sr. Pinto, com salão de cabeleireiro de homens no Apolo 70, ao Campo Pequeno. Profissional conceituado no meio, com vários concursos internacionais ganhos. Uma espécie de CR7 dos baetas!
Ali fui durante alguns anos e só por volta dos treze anos mudei passando a frequentar um salão que existia no cimo da Avenida da Igreja, em Alvalade, antes de se virar a esquina do Tico-Tico, do qual não consigo recordar o nome.
Fui seu cliente fiel durante muitos anos. Sim, que esta coisa de se mudar de cabeleireiro, é bastante complexa. Requer primeiramente uma razão forte para tal. Depois, existe todo um processo de mentalização. Em seguida, há que enfrentar uma certa dose de risco e, por fim, bastante insistência e nova habituação.
Para se ganhar total confiança no novo profissional são necessárias, mais ou menos, à volta de três ou quatro visitas, sendo obrigatório sair de lá satisfeito com o resultado do trabalho. Se assim não for, é um corrupio de novos ensaios e, muitas vezes, volta-se ao anterior.
Gostava do corte que o Sr. António me aplicava.
Deixei de lá ir regularmente quando passei a usar o cabelo comprido, por volta de 1980. Mais tarde, já nos anos noventa regressei, para não mais voltar, a partir de 1994, altura em que o Sr. António deixou de lá trabalhar.
Desses tempos, recordo os pequenos-almoços e lanches na Pastelaria Biarritz, logo após a saída do baeta, com o vento da avenida a soprar-me nas orelhas e pescoço nus e uma ou outra história vivida nas horas passadas na cadeira do Sr. António.
Estávamos no final de dezembro de 1991. O Natal já lá ia, preparava-se, pois, a passagem do ano.
O ano seguinte, prometia ser um ano de novidades a nível profissional, uma vez que já tinha sido abordado pela empresa no sentido de poder haver uma oportunidade de passagem para o departamento de Marketing, coisa que me entusiasmava verdadeiramente. Assim viria a acontecer e a boa nova foi oficialmente comunicada, logo nos primeiros dias de 1992, durante a reunião anual da empresa, realizada no Brasil, país escolhido como destino, premiando os objetivos de vendas alcançados em 1991.
A viagem foi recebida com entusiasmo por todos e, no meu caso, preparada com rigor.
A perspectiva de passar de um clima agreste, típico de janeiro na Europa para o sol abrasador
da América do Sul, em pleno verão, levou-me  fazer algumas compras de recurso, tais como calção de banho, óculos escuros e calçado leve e desportivo.
Os cuidados com o corpo também não foram esquecidos e, assim, protetor solar e bronzeador fizeram parte da lista.
A pensar no calor que iria ter de suportar, incluí na lista de tarefas o habitual corte de cabelo, para não correr o risco de me chatear constantemente com os jeitos e trejeitos que o mesmo ganhava constantemente, ainda mais com praia e piscina à mistura.
Deste modo, programei uma passagem pelo Sr. António uns dias antes da partida.

Ali estava eu, na cadeira, a ser atendido pelo Sr. António…
Normalmente, o salão encontrava-se cheio, mas, naquele dia, o movimento era ainda maior.
Talvez devido à época que se atravessava, de descontração para muitos, de férias para outros, tenha levado a um maior descuido relativamente ao comprimento das melenas, ou simplesmente a disponibilidade permitisse uma programação de ida ao barbeiro, dado que as semanas anteriores à quadra natalícia são muito atarefadas e o tempo parece que não chega para tudo.
Depois de algum tempo à espera, lá chegou a minha vez!
O mesmo ritual de sempre! Em primeiro lugar, o célebre pano. Depois uma passagem do cabelo por água, que a tesoura emperrava se assim não fosse. Em seguida, o corte… tica, tica, tica, o Sr. António utilizava todo o seu saber com os mindinhos no ar, manuseando com arte a tesoura e o pente. Eu, quase que adormecia com o som e relaxe que tal momento me  proporcionava. Eis senão que:
- Sim, Sr. Doutor! Há quanto tempo não o via, Sr. Doutor! Como está o senhor, Sr. Doutor? E o seu pai, Sr. Doutor?... Veja se está bem assim, Sr. Doutor?...
Sr. Doutor para aqui, Sr. Doutor para ali… Levantei a cabeça e olhei para a direita. Na cadeira ao meu lado, encontrava-se um rapaz mais novo do que eu (tinha eu então vinte e seis anos), talvez para aí com os seus vinte anos, à volta disso, todo enfarpelado, com um fato azul-escuro.
Impossível ter ficado indiferente a tanta mordomia no atendimento. Que deferência, que atenção desmesurada, que subserviência!...
O Sr. António, percebendo a minha curiosidade, sorriu e esclareceu-me.
Contou-me tratar-se de um cliente que conheciam desde criança. O avô era cliente de há muitos anos, um dos mais antigos do salão e o seu pai também.
Os anos passaram e tinha acabado de se licenciar em direito, há pouco tempo, pelo que faziam questão de o tratar por Sr. Doutor.
No mínimo, curiosa a história, demonstrativa da nossa forma servil e bem portuguesa de lidarmos com o próximo. Rocambolesca, pela sua continuidade, gerando uma situação inesperada, que nem sequer eu podia imaginar (!?...)

Ali estava eu, sentado no avião da TAP que nos levava na maior viagem que tinha feito até então, rumo ao aeroporto internacional de Guarulhos, em S. Paulo.
O Brasil! Que magia!...
Era a primeira vez que cruzava o Atlântico e a sensação era incrível.
Até então, o Brasil era parte dos meus sonhos de menino.
Primeiro que tudo, por causa do futebol; Pelé, Jairzinho, Carlos Alberto, Rivelino, Garrincha e  Tostão, as coleções de cromos, os mundiais de futebol na televisão, a eterna discussão sobre quem era o melhor, se Pelé, se Eusébio, os desenhos animados dos Flinstones, falados em português do Brasil, os almanaques do Patinhas, a história de Portugal, Pedro Álvares Cabral, o grito do Ipiranga!
Já na adolescência, sempre o futebol e a música; Chico Buarque, Bethânia, Gal Costa, Vinicius, Toquinho, Ivan Lins, Simone, Ney Matogrosso, Gilberto Gil, João Gilberto, Elis Regina, Jorge Bem e… bem, tantos outros, para não falar de Gabriela Cravo e Canela e de tudo o que as novelas brasileiras trouxeram de novidade e magia às nossas vidas, a partir de 1976!...
Chegámos pela manhã, recordo-me, envoltos numa agitação esfuziante.
Para quase todos nós, o Brasil era um sonho.
Ainda no decorrer da viagem, havia quem brincasse, adotando o sotaque brasileiro, como que antecipando expressões e diálogos que iríamos ouvir e pronunciar nos próximos dias.
Alguns falavam dos câmbios e das recomendações feitas por amigos que lá tinham estado. Outros, já no aeroporto, procuravam as tão faladas e sonhadas mulheres brasileiras que povoavam a imaginação do homem português. Mesmo as nossas colegas demonstravam essa curiosidade e comentavam-no. Afinal, também elas as inspiravam, numa época de abertura e descoberta, aquela que vivíamos em Portugal.
Enquanto nos preparávamos para sair do avião, iniciei uma brincadeira com uma colega minha, a Sónia Marçal, dando-lhe continuação já no autocarro que nos transportou para o Hotel Maksoud Plaza, perto da Avenida Paulista.
Brincava, olhando para a rua através do vidro do autocarro e dizendo repetidas vezes à Sónia que conhecia este e aquele, tudo gente que circulava nos passeios. Como se todas as pessoas fossem actores e figurantes conhecidos das telenovelas exibidas nas televisões portuguesas, ao longo dos últimos dezasseis anos.
Brincadeira singela que resultava em boa disposição para quem estava feliz, ao mesmo tempo cansado e um pouco descompensado, situação normal após quase dez horas de voo.
A Sónia ria-se com os disparates. A determinada altura disse-lhe, ao acaso:
- E espera, que o mais surpreendente ainda está para vir! Deixa sairmos do autocarro!... – mais risos por parte da Sónia.
Finalmente chegámos ao Hotel.
O alvoroço resultante da retirada das malas, juntamente com o primeiro contacto verdadeiramente sentido com o clima húmido e quente de S. Paulo agitou-nos ainda mais e, entre encontrões, ruído de vozes e gargalhadas, entrámos pelo hall do hotel adentro, direitos ao balcão da recepção onde teríamos de fazer o check-in. Todos em fila, a Sónia manteve-se junto a mim.

Ali estávamos nós, em S. Paulo, a 7950 Km de nossas casas, longe de tudo e de todos…
Pensávamos!…
Olhei para o balcão, a fim de me aperceber de quantas pessoas tinha à minha frente, desejoso de fazer o check-in e, assim, subir rapidamente para o quarto, para tomar o tão desejado e merecido duche.
De repente, algo me chamou a atenção e surpreso com o bizarro da situação, decidi retomar a brincadeira. Voltei-me para a Sónia e disse-lhe:
- Há pouco referi que o mais surpreendente estava ainda para vir, lembras-te? – atirei-lhe – Olha!... Estás a ver aquele tipo a ser atendido, ali ao balcão? Aquele ali, de óculos... Conheço-o!...
A Sónia riu-se e eu insisti:
- É verdade, não acreditas!?... E mais, vou lá falar com ele!...
A Sónia continuava a rir e não valorizou a minha observação.
- Ai não acreditas? – perguntei-lhe e antes que obtivesse qualquer resposta, puxei-a por um braço, saímos da fila e avançámos duas ou três posições, pedindo licença aos colegas.
A Sónia começou a ficar incomodada.
- Ó João, deixa-te de parvoíces! Vá, já chega. Era mesmo isso, logo aqui, em S. Paulo, com um mundo tão grande!...
- Vais ver! – retorqui.
Chegados ao balcão, toquei nas costas da pessoa que fazia o check-in.
Aparentava ter à volta dos vinte anos e usava fato e gravata.
Mostrou-se surpreendido com a abordagem feita. Descansei-o de imediato, esboçando-lhe um sorriso franco.
A Sónia estava incomodada e parecia,ao mesmo tempo, envergonhada, dado o tom e expressão facial.
- Desculpe estar a incomodá-lo – avancei – diga, por favor a esta minha amiga que é português, que vive em Lisboa, recém-licenciado em direito e que cortou o cabelo há cerca de dois dias em Alvalade, na Avenida da Igreja!
O rapaz e a Sónia ficaram atónitos com tal descrição e, por breves instantes, nem sequer conseguiram raciocinar… Lógico que eu o conhecia!
- Como é que você sabe tudo isso? É bruxo? – perguntou, afastando-se um pouco para trás.
Bom, lá tive que lhes contar a história toda e, a pouco e pouco, os dois voltaram ao planeta Terra. Acabámos os três a rir e concluímos, em concordância total, o quão pequenino este mundo é, para além de ser redondo, também.
Há alguns dias atrás, nem sequer sabia da existência de tal personagem, dois dias depois, estava a revê-lo a quase 8000 Km de casa, em S. Paulo.
Olhava-o, ao Sr. Doutor e parecia que ouvia o som da tesoura, marcando o compasso, ao fundo…
Ele há na verdade com cada história!...

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segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Pena maior

Bato o portão do jardim
Subo seis degraus de volta
Abro a porta e entro em casa
Logo o silêncio se solta
Silêncio este sem fim
Paro e olho ao meu redor
Mergulho no corredor
A maré agora é vasa
E já só me resto a mim

O alpendre iluminado
Contrasta com a escuridão
Da noite que se despede
Receosa do papão
Já com o sono encomendado
Vou p’ró quarto, até amanhã
Solidão, meu talismã
Malabarista sem rede
Pela insónia condenado

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sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Dia de aniversário

Acordas manhã bem cedo
Que o dia, hoje, é de festa
Levantas-te e dás um salto
Já prontinho olhas-te ao espelho
Estás porreiro e até mais alto
O tempo não mete medo
Que essa história de mais velho
Já tem barbas e não presta

Passaram já uns bons anos
Desde que de ti fugiste
Convencido que és feliz
Mais ainda que és eterno
Não morreste por um triz
Vais fintando os desenganos
Estás mais jovem, mais moderno
Preso a tudo o que mentiste

Sentes-te único e galã
Pensas que és um sedutor
De saúde  tudo bem
Médico só de vez em quando
Pois percalços quem não os tem
Hoje não, vou amanhã
Deste modo vais andando
Passam os anos, que horror

Mas então, foi tua a escolha
Muitos anos se passaram
Tanto tempo sem memória
Sem lembrança de alguém
É passado, velha história
Vives hoje noutra bolha
Nela envelheces também
Porque as horas não pararam

Vá, não chegues atrasado
Que hoje vais sair mais cedo
A família e os amigos
Estão todos à tua espera
Mais importante, os teus filhos
Cansados de ti cansado
Um abraço quem lhes dera
É seu desejo em segredo

O que levas desta vida
Se o mais é só desapego?
Nesta luta desigual
Inimigos não te faltam
Desculpa, não foi por mal
Dão palmadas e em seguida
Atraiçoam e maltratam
É na escola, é no emprego

Ajudaste quem pudeste
Deste tudo o que tinhas
Que demais é sempre pouco
Vendeste a alma ao diabo
Trabalhando como um louco
Ganhaste e também perdeste
Para agora, ao fim e ao cabo
Teres algumas coisinhas

Ah, mas hoje o dia é de festa
Haja pois muita alegria
Nem que seja p’ra mostrar
Que a vida te corre bem
Não há nada a lamentar
E melhor vida do que esta
Que se acuse quem a tem
Não existe, quem diria

E assim logo à noitinha
Bem bebido e enfartado
Triste, vestes teu pijama
Sem esqueceres o teu chichi
Já no quarto vais p’ra cama
Boa vida, tão certinha
A que Deus te deu a ti
Tem um sono descansado!

Já no escuro do silêncio
Há revolta e ruído
Que não te deixam dormir
Ali ficas acordado
Com tanto por construir
Só que o medo é tão intenso
Que teu sonho é castrado
Sem ao menos ter nascido

Assim é com tanta gente
Que tem medo de sonhar
Entretida com o tempo
Não entende que a vida
Como que um sopro de vento
Dá-nos um corpo doente
Com memória já esquecida
Faz nosso sonho mirrar

Olha que ainda tens tempo
Se o medo quiseres vencer
Vive a vida em teu redor
Porque amor à volta tens
Esquece o medo e o pavor
Solta a alma e o sentimento
Hoje é festa, parabéns!
Tens a vida p’ra viver!

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quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Banquete de amor

Teu sexo é furna onde me abrigo
Nele sossego e poiso o meu rosto
Universo que se conjuga e desconjunta
Coração que acelera indomável
Ao ponto da minha pele arrepiada
Encontrar na tua a humidade tranquila
Que lubrifica o meu desejo
Fazendo escorregar até ao seu interior
O que dizes ser grande
Ao entrar em ti…

Anda, sente!... sente e goza
Quero que gozes, que grites e te curves de prazer
Que transpires e grites, assolada por choques
Vá, não pares, sente…
Que eu gosto tanto quando comprimes os teus pés
Escorregando de transpirados por sobre os meus rins
Enquanto a tua garganta solta gemidos e língua
Lânguida, ávida de saliva e cuspo
Tempero trocado pelos dois
Degustado durante o banquete
Oferecido pelos nossos corpos

E então ele, onde está?
Onde está o amor?
Por todo o lado, no chão, paredes e teto
Nas mãos no olhar, no toque e no olfato
Nos palavrões que usas, na forma como de mim abusas
Nos preliminares, na excitação, no ato
Agora, vá, estamos quase, por favor não pares…
Quero-te assim, pronta a te desintegrares
Estou aqui contigo, vou para onde me levares
Silêncio, onde estamos?...
Decerto planamos!?...

Deixa-te estar, fica calma aqui comigo
Quero que regresses a ti em sossego
Goza e sente a tranquilidade
Gosto que me sintas assim, nu e estoirado
Aconchegado a ti e todo transpirado
E tu a mim, suada e deliciada
Enquanto nossas mãos se esfregam e nos enxugam
Apertando-se tensas feitas camurça dos Balcãs
Nesta tranquilidade partilhada pelos nossos sexos
Após tão excitante banquete de amor
Antecipando a merecida sesta até de manhã

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terça-feira, 16 de setembro de 2014

Seja o que Deus quiser...

O calendário pelo qual me rejo alterou-se desde que fiquei desempregado, corria dezembro de 2011.
Presentemente, o ano inicia-se em meados de setembro e não em janeiro, como dita o calendário gregoriano.
Por isso, para mim, ontem foi o primeiro dia do novo ano.
Às zero horas de ontem deu-se, portanto, a passagem de ano. E tudo aconteceu sem festejos, champanhe, passas e muito menos contagens decrescentes. Passou-se, apenas…
Normalmente, aproveito as primeiras duas semanas de setembro para fazer o balanço do ano que chega ao fim.
Costumo fazê-lo tranquilamente em casa, ou então a caminho da praia, enquanto os dias de sol insistem em existir, embora com a chuva e o vento a pregarem, já, algumas partidas. Assim tem sido desde 2012, ano que me mostrou uma nova forma de olhar e aproveitar a vida.
Pensando bem, “olhar e aproveitar a vida” não é a expressão mais correta, uma vez que não contém em si toda a dimensão do ato. É uma expressão banal e extremamente redutora. Substituo-a, pois, por “contemplar e viver a vida”.
É verdade, desde o primeiro dia de janeiro de 2012 que contemplo e vivo a vida como nunca o fizera dantes.
Verdade, também, que toda a minha existência mudou, sim, desde dezembro de 2006, mês triste da partida da minha mãe.
Desde então, foi como se tivesse nascido outra vez. E que parto doloroso foi, o meu, de novo.
Como que voltar a nascer mas num mundo inóspito, triste, olhando à volta e vendo apenas terra queimada, vazio, olhando o futuro sem enxergar nada. Ainda que, tendo a família, o suporte dos amigos e a rotina do trabalho que nos entretém ao longo dos anos.
E assim reaprendi a viver ao longo dos anos gregorianos seguintes. Uma procura intensa da felicidade, com alguns momentos felizes e outros de profunda tristeza.
Nesse tempo sim, eu olhava e aproveitava o que a vida me ia pondo de novo à disposição, ao mesmo tempo, tendo a perfeita noção de que avançava numa perspectiva autista e egoísta de viver.
Hoje, são quase três anos de aprendizagem em crescendo.
Tudo teve início, como já referido, no final de 2011, altura em que me retiraram a hipótese de continuar a trabalhar no projeto que tinha abraçado em 2007 e que também ele ajudou a ocupar os meus dias e a crescer de novo. Foi, contudo, uma situação inesperada e violenta para quem sempre trabalhou, desde jovem, sem nunca fugir à exigência e à responsabilidade.
Dessa forma, mais expectante do que preocupado, entrei em 2012, segundo o calendário gregoriano.
Reposicionei-me, fiz uma análise da situação e concluí que eram em maior número os pontos fortes e as oportunidades, do que os pontos fracos e as ameaças. Assim quis que fosse e assim tem sido!
Claro que, se reduzida a análise à questão monetária, a conclusão seria a inversa, óbvio.
Mas não, felizmente…
Nestes quase três anos pude estar bem perto da minha família. Acompanhei a doença do meu pai e dei-lhe todo o apoio que julguei necessário. Horas de conversa, finais de tarde a vermos televisão, para depois comentarmos os programas dos mais diversos canais, almoços de fim-de semana, idas a consultas e visitas ao hospital, entre tantos outros momentos de entrega e partilha mútua.
Mas, tantas vezes o cântaro vai à fonte que alguma vez lá fica. Assim aconteceu a 4 de julho de 2013 depois de dois internamentos hospitalares. O seu coração desistiu de lutar.
O meu pai resistiu sete anos ao desaparecimento da minha mãe. Costumava dizer que o sete era o seu número preferido, o da sorte. Quero acreditar que poder encontrá-la ao fim de sete anos foi qualquer coisa de extraordinário para si.
A vida é sábia e depois de me ter preparado para viver assim, sozinho, sem os meus pais, deu-me a alegria de ter uma neta, razão forte pela qual bate hoje o meu coração.
E a minha filha? E as duas juntas, de manhã na cama a brincarem? E os seus risos?
Muitas vezes recordo um amigo meu, já no final da vida, que me dizia:
- João, basta-me, quando acordo, olhar para os pezinhos do meu neto e vê-los mexer. Se assim for, não é preciso mais nada, tudo está bem!...
Assim acontece e estes quase dois anos deram-me tanto que não quero voltar atrás e a minha filha e a minha neta são os meus maiores tesouros.
Contemplo, contemplo e contemplo!... Vivo, vivo e vivo!...
Pelo meio, tenho pintado, desenhado, escrito, tocado e cantado. Vida de cigarra, dirão alguns. Os mesmos que criticam a vida de formiga de outros.
Durante estes três anos gostei e desgostei-me, amei e desamei, perdi-me e reencontrei-me e sobretudo vivi. E é isso que quero continuar a fazer.
O balanço do ano que agora terminou está feito. Foi sem dúvida um ano especial.
Venha o próximo ano e tudo o que ele traz consigo, surpreenda-me ou não.
Do ano anterior guardo a família, os amigos que me acompanham desde sempre, aqueles que reencontrei e com os quais voltei a estreitar laços, todos os momentos que com eles passei e a vontade de reencontrar outros tantos.
Do ano que passou, persiste a vontade de ver todos os meus sonhos concretizarem-se. Se assim não acontecer, então que os sonhos se mantenham para o ano seguinte.
Desta forma, vou transportando comigo o verdadeiro capital da minha vida.
Transporto, também, a alegria e o optimismo com que costumo olhar em frente e a crença de que a vida tem mais para me dar do que para me tirar.
Se ela assim o fizer, levará consigo um saco cheio de emoções, com muito para vasculhar, ao espalhá-las sobre uma mesa.
No fim de tudo isto, à pergunta de qual o ano em que estamos, não sei o que responder!?...
Ontem foi o primeiro dia de mais um ano por inventar…
Seja o que Deus quiser.
A todos, desejo um bom ano!

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domingo, 14 de setembro de 2014

Para quê complicar?

Mania de complicar o que é simples…
Ou, como uma história nos reporta a outra e essa outra a uma terceira e a conclusão de todas elas é a mesma… Para quê complicar?...
O filme não é grande espingarda mas, o facto de ter Liam Neeson e Pierce Brosnan como protagonistas, fez-me parar o zaping iniciado, no canal Hollywood e passar algum tempo da minha tarde de domingo refastelado num dos sofás da sala, enquanto a minha filha, no outro, se esforçava para acompanhar o filme, fazendo-me, assim, companhia. Entre um ou outro comentário meu, lá ia ela encontrando uns minutos para dormitar.
Conforme já referi, o filme, embora passado no tempo em que a bala era a lei, não é grande espingarda. O seu título, Seraphim Falls, data de 2006 e em português recebeu o nome de “Duelo de assassinos”. A propósito, para quê complicar?...
O enredo traduz a caçada exercida por um coronel da Confederação (Liam Neeson) a um soldado da União (Pierce Brosnan), após a Guerra Civil Americana, por volta de 1860, explorando temas civis, tais como a violência, a vingança, a sobrevivência humana, a guerra e seus traumas. Toda a trama se passa no faroeste, sendo visível a preocupação do fiel retrato da época.
Em determinado momento fui atraiçoado!...
Quando já tinha entrado em todo este ambiente (só falta mesmo a televisão interativa reproduzir os respectivos odores), com palavras carregadas de mau hálito, proferidas bem perto da cara uns dos outros, cavalos mal tratados, personagens sem verem banho há meses, cheiro a pólvora e sangue, palavreado rude e ordinário, em consonância, eis que sou confrontado com o insólito!...
Em plena cena de suspense, ocasião em que Pierce Brosnan se encontra refém num acampamento de operários que construíam uma linha de caminho-de-ferro e é surpreendido pela chegada de Liam Neeson ao local, em sua perseguição, este, caminhando por entre as tendas ali existentes, vira-se para os seus dois companheiros de caçada e ordena-lhes:
- Sigam que eu já vos apanho. Tenho de ir fazer chichi!...
Assim, sem mais nem menos!?... Ou melhor, a legendagem matou-me o filme com esta preciosidade! Um pistoleiro não faz chichi!...
Fazer chichi!?... Não podia ao menos ser “vou ali verter águas”, “vou mudar a água às azeitonas” Ok, o filme é passado no faroeste e não no Alentejo… Ou porque não simplesmente “vou ali mijar”!?... Para quê complicar?...
Foi aqui que comentei alto e a minha filha abriu os olhos.
Este momento insólito transportou-me para um episódio que vivi, corria o ano de 1987, encontrando-me na ocasião a cumprir o serviço militar nas fileiras do exército português. Agora sou eu que estou a complicar! Estava na tropa!... Melhor assim!...
Depois de cumprida a recruta, fiquei aquartelado na Graça e prestei serviço na DSFOE (Direção dos Serviços, Fortificações e Obras do Exército), ao Campo de Sta. Clara, para descomplicar, junto à Feira da Ladra.
Ora, de quinze em quinze dias, à terça-feira, se não me engano, todos os militares ali aquartelados, prestando serviço nas diversas instituições do exército, tinham de se apresentar no Quartel da Graça para a formatura quinzenal, onde o nosso Comandante de Companhia passava revista às tropas.
O nosso capitão era tido como um terror.
Parecia o capitão Haddock, dos livros do Tintin, com a sua barba cerrada e feitio refilão, era pequenino e tinha a alcunha do Ayatola. À parte disto, tinha um certo humor e pude, por diversas vezes, constatar que era justo nos seus julgamentos e decisões.
Desconheço o que se passou desde então com o Capitão Saraiva.
Na terça-feira, dia 11 de novembro de 1986, dia de São Martinho, pela manhã, fomos informados que, da parte da tarde, após a formatura quinzenal, teríamos a visita do Major Capelão, que nos iria falar da história de S. Martinho e da sua importância no panorama religioso da igreja católica. Deste modo, quando terminasse a formatura na parada, deveríamos reunirmo-nos nas oficinas do quartel, local escolhido para a palestra.
Claro que foi assunto largamente comentado ao longo de toda a manhã.
Primeiro, um Major Padre! À partida, a curiosidade era por si só, motivo de chacota e de algumas piadas inventadas no momento.
Depois, quanto tempo iríamos ter de estar sentados dentro daquele barracão e o que esse tempo representava no atraso das tarefas nos nossos serviços?...
A melhor forma de o suportar era rir.
E assim foi!
O próprio Capitão Saraiva brincava com a situação e atirou umas piadas durante a revista na parada, enquanto o major instalava o equipamento sonoro nas oficinas. Estávamos todos curiosos!...
Finda a formatura, lá fomos para a palestra.
Não havia lugares sentados para todos. Fomo-nos arrumando, encostados às paredes e aos portões e dividimos os bancos corridos que existiam. Aos poucos estávamos todos instalados, no meio duma nuvem de fumo, uma vez que a maior parte de nós fumava.
Estavam ali à volta de duzentos homens, soldados, cabos, sargentos e o próprio Capitão Saraiva, com o seu sorriso malicioso por debaixo da barba e os olhos semicerrados, a perderem-se abaixo das sobrancelhas farfalhudas. Hoje, acho que os seus olhos eram parecidos aos do Gilberto Madaíl…
Não foi efetivamente uma tarde fácil para o major.
De tudo ele tentou para prender a atenção dos militares, mas a ação de evangelização não convenceu ninguém.
Começou por desmistificar a popularidade do São Martinho, bem como os rituais gastronómicos inerentes ao seu dia. Depois, tentou falar de todo o seu percurso na Terra, das suas virtudes, dos seus milagres. Na verdade, todos nos questionávamos, para quê complicar?...
A malta queria era bazar dali para fora, mas era chegada a hora das questões que o major queria que colocássemos, para ver se tínhamos entendido bem a matéria.
Eis que em determinado momento, quando a seca já era demais e ninguém se adiantava no sentido de perguntar algo, um dos cabos mais velhos, dos chamados Cabos Chicos, isto é, cabos contratados, homem para os seus quarenta anos, colocou o dedo no ar, como se estivesse na escola, provocando risada nos que o rodeavam.
O Major Capelão delirou com a interação daquele militar mais velho.
- Finalmente alguém! Diz, jovem!... – soltou, apontando para o fundo da sala com o braço estendido e palma da mão a quarenta e cinco graus.
- Posso ir fazer cocó? – perguntou o cabo
O barracão explodiu e até o capitão Saraiva não aguentou a gargalhada espontânea.
- Espera só um bocadinho – disse o Major Capelão – Só quero terminar com uma música para todos cantarmos!
Enquanto ríamos ainda todos, começou a soar a música do Padre Zezinho “Amar como Jesus amou”, cantada pelo José Cid, enquanto o Major batia as palminhas e tentava que nós todos entoássemos a canção. Assim fizémos para fim de festa.
Rapidamente o Major meteu a aparelhagem na sua Peugeot 204 cinzenta, do exército e basou dali para fora.
Mantivemo-nos nos nossos lugares à espera de ordens do Comandante da Companhia, o Capitão Saraiva.
O Capitão Saraiva tentava colocar uma expressão séria, mas não resistia e, de vez em quando, deixava soltar uma ou outra lágrima provocada pelo riso, que limpava com os dedos ou, em último recurso, com o lenço.
Quando a platéia ficou mais calma, iniciou o discurso final…
- Meus senhores, com todo o respeito pelo nosso Major Capelão, bem como respeitando todo o esforço aqui desenvolvido, eu, como vosso Comandante de Companhia, vos digo para esquecerem o que ele aqui vos contou. O São Martinho será sempre o santo das castanhas assadas e da água-pé! Tenho dito e agora ide para os vossos serviços!
Hoje, ao ler a legenda da fala do Liam Neeson, a do chichi, não pude deixar de me lembrar da do cocó, soltada pelo meu camarada da tropa.
Ambas despropositadas, uma complicou um filme que estava a correr bem e a outra descomplicou uma situação que estava a chatear.
Já a conclusão do Capitão Saraiva reforçou a ideia de que, quando as coisas são fáceis e do consenso geral, para quê torná-las complicadas?...
Vou ter de ver a parte do filme que perdi enquanto contava este episódio à minha filha.

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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Caleidoscópio

Basta esperarmos cinco minutos
Assim, com os olhos bem fechados
E seremos felizes para sempre.
Caminharemos junto a um riacho
E saberemos o nome de todas as estrelas
Contaremos os ramos das árvores
E atiraremos pedras a perder de vista…

Ao abrirmos os olhos
Toda a miséria ter-se-á dissipado
E o riso dos meninos será da cor dos céus
As nuvens darão os bons dias às aves
E a chuva fará germinar na terra
Sementes de esperança
De um novo mundo por inventar…

Dois minutos e meio já lá vão
E dentro de outros dois e meio
Seremos felizes para sempre
Oiçamos, pois, Chopin, assim, sentados
Enquanto tocamos com as pontas dos dedos
Nos braços das cadeiras
Marcando compassos que nos entristecem…

Aqui, sentados no nosso terraço
Resta-nos já tão pouco tempo
Observamos a majestosidade do movimento das nuvens
Obrigando os nossos olhos a segui-las
Ao som de Chopin, com elas, arrastam-se todas as imagens
De um mundo belo e confuso, redondo e achatado
Caleidoscópio em tons de azul chamado Terra…

Esta Terra composta de água e terra
A terra que emana angústias, sonhos, alegrias, medos
E todas as injustiças advindas do terror dos homens
Que se evaporam nas nuvens em tons cinzentos
Devolvendo-nos sinais em forma de água pura
Condensação simples por entre rebombares barulhentos
Anunciadores de nova vida…

Sobra-nos agora meio minuto
Para sermos felizes para sempre
Estamos ainda a tempo de tudo
Dispamo-nos destas roupas
E abracemos as árvores
Mergulhemos de olhos fechados no riacho
Sustendo a respiração até voltarmos à superfície…

Ao abrirmos braços e olhos, respiraremos o céu
Nele não faltará nenhuma estrela
E rindo, voaremos com as aves
Ao mesmo tempo que brincaremos com os meninos
Que germinam na nova terra
As nuvens embaladas por Chopin, desaparecerão
E com elas todos os nossos piores pesadelos…

Esgotado o tempo, apanhamos a corrente de ar quente
Felizes por ainda podermos ser felizes para sempre
Há vida nova na Terra!
Chopin rasga os seus noturnos
Amanhece e o céu é cada vez mais azul
Abraçados, ouvimos as quatro estações de Vivaldi
Cinco minutos que foram por demais…

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quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Paralelo e sem saída

Sigo para Norte
Vou paralelo à fronteira
Paralelo à minha outra vida
Aquela que há dois dias deixei para trás
Nem sei bem qual delas
Se a falsa ou a verdadeira?...
Tanto me faz!...

Amiúde, sinto-me perdido
Não sei para onde caminho
Mas acredito que chego lá
Porque será?...

Sigo em frente, de qualquer maneira
Como se não fora sempre assim...
Como se fosse esta vez a primeira
Sigo até ao fim...

Finalmente encontro um portão
Que no fim do caminho percorrido
Paralelo à minha outra vida
Imita e delimita o meu futuro
E não!..
Não é um muro…
Apenas um sinal de estrada sem saída…

Voltar para trás?...
Pode ser, pois tanto me faz!...

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quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Inquietude

Fica tranquila
Fica bem
Segue adiante
Vá, que o resto não é importante
Essa dor já vai passar
Se não, ficará ela para sempre
Para quê desesperar?
Põe os olhos na corrente
Lá vai a água que ainda agora molhava nossos pés
Com eles, molhados, nossos desejos também
E com eles todos os nossos sonhos vão
Vão com as marés
E se água vai, logo outra vem
Quem quiser saber de nós que nos vá esperar à foz
Que mergulhem sem medo e nos busquem no fundo
Lá, onde os peixes são felizes
E onde as algas se entrelaçam
Lá, nesse local onde não há dor
Só amor profundo,
Náufragos que se abraçam
Que a água tudo lava e o iodo desinfeta
Sente a corrente do rio, meu amor
O mesmo rio que um dia batizou o profeta
Fica tranquila
Quero que fiques tranquila e quieta
Vá, que o resto não é importante
Essa dor já vai passar
Se não, ficará ela para sempre
Para quê desesperar
Se nos dói só por amor?...

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