terça-feira, 1 de abril de 2014

Que se lixe o Louro, o Alho e o Brito!...

É-me tão familiar o barulho da chuva a bater nas vidraças das janelas.
Desde pequeno que o oiço e, por isso, identifico-o. E identifico-me…
 tardes destinadas a nunca serem esquecidas, como aquela em que senti a insegurança e a angústia pela primeira vez…
A sala de aula, virava salão de estudo, durante a tarde. Era cinzenta, escura, austera, transmitindo uma enorme energia negativa, em certa medida irradiada pelo prefeito, sentado à secretária, de olhar agressivo, ar de mau e instinto de bufo.
A diferença de idades era marcante.
Ele, na casa dos vinte anos, estudante de um qualquer curso superior, vindo de fora de Lisboa e, por isso, safando a vida naquele part-time, que lhe assegurava, para além de uns trocos, cama e roupa lavada, à noite, como vigilante das camaratas, onde os alunos internos dormiam. Nós, garotos com dez, doze anos, preparávamo-nos para iniciar o liceu, após a conclusão do ciclo preparatório.
A relação estabelecida era na base do medo e nunca na do respeito. E assim crescíamos e assim nos afastávamos cada vez mais do método de ensino instaurado naquele colégio.
Aquela foi, porém, uma tarde diferente de todas as tardes que tinha vivido até então.
Naquela tarde experimentei a insegurança e a angústia pela primeira vez…
De vez em quando, o Brito saía do seu lugar e caminhava pelos corredores que mediavam as filas das carteiras, com as mãos cruzadas atrás das costas, segurando uma vergasta com a qual nos surpreendia ao batê-la com força em cima do tampo das carteiras, sempre que se apercebia da distração de algum aluno.
Era assim uma espécie de ambiente de terror, aquele que tentava criar entre os alunos, com idades compreendidas entre os dez e os doze anos!
Aquelas tardes, ouvia os meus colegas comentarem, eram terríveis e angustiantes. Não para mim, que tinha o estatuto de aluno externo, queria isso dizer que frequentava o colégio apenas no período de aulas, normalmente durante o meio-dia da manhã, mas para todos os que, após esse período, tinham ainda de passar por aquele castigo, que transformava os dias de sol, quando a Primavera chegava, em dias completamente cinzentos, que faziam olhar o amanhã com pouca vontade, num role de lamentações.
O salão de estudo ficava, assim, reservado para os alunos semi-internos e internos, estes últimos, os que iam a casa apenas ao fim-de-semana. Alguns deles apenas o faziam nas férias, coitados.
Recordo que comparávamos o colégio à prisão Colditz, muito em voga na época, uma vez que passava na televisão a série com o mesmo nome. Esta comparação advinha não só do ambiente que existia internamente, devido à disciplina rígida, como ao clima de desconfiança em que vivíamos, para não falar da própria arquitetura do edifício, com dois pátios interiores, onde fazíamos fila às onze da manhã para, a troco de uma senha diária, recebermos uma carcaça com manteiga ou mortadela.
Deste cenário acabavam por fazer parte, também, tantos e tão bons professores, gente boa como a Professora Adelaide, de Matemática, o Professor Velez, de Português, o Carlos Rodrigues, dos Trabalhos Oficinais e o Sr. Moura, de Ciências e mais tarde Geografia, completamente engolidos pelo repressivo sistema que governava o colégio e que tinha nas figuras do Sr. Louro, e do Alho, diretor e chefe dos prefeitos, respectivamente, a personificação do medo e da repressão, bandeira do ensino em Portugal, durante o antigo regime.
Embora tendo já acontecido o 25 de abril há uns três, quatro anos atrás, os sinais de mudança eram pouco visíveis no colégio.
Dizia eu que, aquela tarde foi para mim diferente, não só porque, pela primeira vez, também eu fiquei no salão de estudo, podendo assim observar e confirmar com os meus olhos tudo aquilo que ouvia diariamente da boca dos meus colegas mas, acima de tudo, porque a minha mãe, à mesma hora, estava a ser submetida a uma cirurgia extremamente delicada, situação que a trazia debilitada há já alguns anos, tendo por isso, nesse espaço de tempo, perdido bastante peso, temendo-se o pior.
Nós, ainda pequenos, percebíamos que as coisas não estavam bem, sofríamos com o seu sofrimento, embora a nossa mãe preferisse poupar-nos dessa dor mas, aqueles eram tempos em que a ideia de podermos perder os nossos pais nem sequer nos aflorava o pensamento. Pelo menos até àquele dia…
Guardo, daquela tarde, três imagens.
Uma real, constatada no momento, a da janela ao lado da minha carteira e as vezes que olhei através dela, colocando o olhar no horizonte, como que a tentar um contacto extra-sensorial com a minha mãe. Outra imaginária, quase real, é certo, a do rosto da minha mãe a bailar-me à frente, constantemente. Por último, uma completamente fantasiosa, construída, na qual, eu e o meu irmão, órfãos, regressávamos a casa tristes e assustados…
Com efeito, naquela tarde borrifei-me para o Brito e para o estudo.
Havia muito mais para pensar e novos sentimentos estavam a ser experimentados.
A cirurgia estava marcada para as 15h00, no Hospital de Jesus, em S. Bento, ao fundo da Calçada do Combro, ao lado do Liceu Passos Manuel e lembro que àquela hora rezei uma oração com uma vontade tão grande, que me tranquilizou.
O Brito era agora tão ridículo!...
Naquela época não havia telemóveis, mas o nosso pai telefonou para o colégio assim que a cirurgia terminou.
- A operação da Mamã foi um sucesso! – foram as suas palavras…
Gravei-as cá dentro como se fossem elas a garantia de que teria mãe por muitos anos.
Daquele dia guardo as primeiras sensações de insegurança e angústia, mas é verdade que senti também, pela primeira vez, o verdadeiro sentimento de alívio retemperador, satisfação, de alegria também e, talvez, o primeiro sinal e ato de fé absoluta.
Recordo ainda que o nosso pai nos foi buscar ao colégio, ao final da tarde e que regressámos felizes, os três, a casa…
Continuei a achar o colégio parecido com Colditz, mas relativizei para sempre a angústia e o medo que o Sr. Louro, o Alho e o Brito personificavam.
Afinal, ali, também era possível ser feliz e que bem me fez ter estado sentado ao lado daquela janela, através da qual o meu pensamento voou e nunca se afastou da minha mãe.
Resta dizer que o dia tinha nascido cinzento, que choveu bastante e eu pude sentir o barulho da chuva nas vidraças da janela, mas que, de acordo com o ditado popular, depois da tempestade, veio a bonança…

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