quarta-feira, 29 de outubro de 2014

O poeta resolve

O poeta arranja sempre maneira
De fazer sentir aquilo que pensa
Com sua caneta tal arma certeira
Provoca emoções de uma forma intensa

Pois nesse processo no qual se envolve
Com início no coração que sente
Entre versos e rimas lá resolve
Equações de amor que assolam a gente

E ao lermos cada um dos seus poemas
Sentimos brotar algo que se entoa
É música bela aquilo a que soa

De ouvido, revelando a solução
Desse enigma chamado coração
Tão cheio de mistérios e dilemas

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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ainda a tempo... Rolex's e outros roubos...

Há histórias que não se esquecem. Há pessoas que nos marcam e que só por elas existirem é que continuamos a acreditar que ainda vale a pena...


Com a boca a saber a café queimado, quente, pousei o cotovelo sobre a mesa e, com a mão esquerda, amparei a testa, enquanto fechava os olhos.
Tentei concentrar-me mas havia qualquer coisa que estava a deixar-me inquieto.
Abri os olhos e percebi que a pilha de pratos com restos de côdeas de pão torrado e guardanapos de papel amarrotados, húmidos da gordura da manteiga, molhados, cor de café com leite, irritava-me.
Levantei-me, depositei tudo em cima do balcão e regressei à mesa. Agora sim, pude concentrar-me.
Ali estou todos os dias, pela manhã, senão, quase todos.
Dali, daquele lugar onde me sento, tem saído muita da escrita que faço e que me mantém mais ou menos tranquilo, assim é desde que estou desempregado.
Só que às vezes é tudo muito estranho…
Fecho os olhos e penso nas voltas que a vida dá.
- Tio, como é que é possível teres sido tanta coisa, diretor de marketing, product manager, diretor comercial, coordenado equipas de vendas, teres recrutado gente, sem seres licenciado? – perguntou-me um dia a minha sobrinha afilhada.
- Olha, talvez tenha sido pelo trabalho!?... – respondi-lhe
Acho que sim. Só pode ter sido… Na verdade, o trabalho foi sempre muito importante para mim, desde bem novo, ainda estudante.
Tão importante que adiei por quase trinta anos aquilo que hoje verdadeiro prazer me dá, pintar e escrever.
Não, que não o tenha feito ao longo deste tempo, mas sempre a correr… Sempre a fingir…
Muitas vezes questiono-me sobre o porquê de não ter perseguido os meus sonhos. A resposta é fácil, igualzinha à de então; precisava de ganhar dinheiro. Era importante!...
E, naquele tempo, tinha tanto para dar, sangue novo, arterial, bem oxigenado, embora fumasse. E não faltaram tubarões, vampiros e parasitas querendo aproveitá-lo. E assim foi, todos se saciaram.
O trabalho via-se. Hoje, mais do que então, estou certo disso.
Mas enquanto foi possível aproveitar-me das conjunturas, não o fiz e, em vez disso, continuei a fazer o que melhor sabia, trabalhar.
Campanhas e mais campanhas; marketing e publicidade; agências e ateliês; budgets e orçamentos; literaturas, folhetos e trípticos; estudos e formações; entrevistas e recrutamentos, avaliações, promoções e despedimentos; reuniões e apresentações; objetivos e comissões; alegrias e deceções; discursos, discussões e muitas, muitas decisões; manuais, testes, conferências, congressos, cursos, exposições; crescimentos, vendas, quotas de sucesso, prémios, viagens e ilusões…
Certo dia, bem cedo, cerca das 08h30, estava já eu sentado à secretária, no meu gabinete, naquele quarto andar da Marquês de Tomar, à Duque d’Ávila, quando tocou o telefone.
Importa referir que nesse dia daríamos início a uma das reuniões de vendas nacionais, pelo que ultimava a apresentação de slides que iria fazer, falando de resultados e apresentando novas estratégias e materiais promocionais. Tinha 26 anos, trabalhava na Cilag-Medicamenta, uma companhia Johnson & Johnson e era product manager de Pevaryl, Gyno Pevaryl e Gyne-T. Pela sugestão dos nomes, cabia-me a responsabilidade da área de produtos de Ginecologia. Era feliz!...
Já no dia anterior, nós, os product managers mais novos, eu e a Teresa, juntamente com o Zé Carlos, que nos ajudou bastante na fase inicial que passámos no departamento de marketing, tínhamos ficado até mais tarde na empresa, uma vez que, naquele tempo, só havia uma sala de computadores e, claro está, porque os mais velhos ocupavam-na durante o dia, não restava aos mais novos senão fazerem serão, isto, se queriam ver o seu trabalho concluído a tempo e horas. Foi o que fiz. Acabaram todos por sair e eu fui ficando, até me perder no tempo. Passava já da meia-noite, quando fui para casa.
Dizia eu que, naquela manhã, o telefone tocou no meu gabinete, por volta das 08h30.
Atendi e ouvi do outro lado da linha:
- Bom dia João, pode vir aqui, no meu gabinete? Por favor…
O Sr. Luís Cupello era o diretor comercial da companhia embora, salvo o devido respeito pelo diretor geral, o Sr. Gray, um verdadeiro scottish gentleman, fosse reconhecido por todos como sendo a inspiração daquela empresa, sobrepondo-se o seu carisma ao do diretor geral. Assim era, logicamente.
Subi, nervoso.
O gabinete do Sr. Cupello era no quinto andar, juntamente com o do Sr. Gray e do Dr. Figueiredo, o diretor financeiro.
O andar tinha uma decoração diferente dos demais. Teto falso, em madeira e paredes cobertas de madeira, também, com alguns espelhos, como elementos decorativos.
A luz era ténue, o que inspirava algum respeito.
Assim que se saía o elevador, ali estavam, à esquerda, em frente e, à direita, o do Sr. Cupello,  seguido dos das secretárias de cada um.
Dirigi-me ao gabinete do Sr. Cupello que me abriu a porta de imediato, estendeu-me a mão num cumprimento afável, mandando-me entrar e sentar, enquanto arrumava umas pastas, gesto habitual seu, que quase parecia ensaiado.
Estava com um sorriso malandro no rosto e com um cigarro na mão esquerda. Finalmente, sentou-se à secretária, na minha frente. Recostou-se um pouco entre os braços da sua poltrona de cabedal, pousou o cigarro no cinzeiro, de imediato passou a mão esquerda no cabelo, levando a franja de risco ao meio, da frente para trás e desabafou:
- Joãoziiiinho… Trabalhando até tarde!...
Naquele momento, fiquei sem saber o que dizer. Nem sequer estava a perceber o porquê de tal abordagem. Teria eu feito alguma coisa de errado!?... Que eu soubesse, trabalhar não fazia nenhum mal!?... Como sabia? Quem lhe teria comentado?... Eram tantas as questões a povoarem-me a mente.
- Ontem fui ao cinema. Passei já tarde, aqui na avenida, olhei, vi luz e um vulto no primeiro andar. – explicou – Hoje, o Sr. Lopes, disse que foi você que esteve trabalhando até tarde.
O Sr. Lopes era o porteiro e habitava no rés-do-chão do edifício. Foi ele quem fechou a porta à chave, quando eu saí.
Será que a imagem passada era a do "engraxador" que fica a trabalhar até tarde, só para ser comentado pelos outros!?... Não, não podia ser! Situações de trabalho fora de horas aconteciam frequentemente e não eram só comigo!?... Então!?... Questões parvas, próprias da insegurança da idade.
- Sr. Cupello, acontece que só existem dois computadores onde podemos trabalhar os slides em Harvard Graphics e… - tentei explicar, sem sucesso. Fui interrompido.
- João, deixa eu contar uma história p’ra você… Havia um cara no Brasil que trabalhou sessenta anos numa empresa!... Você imagina o que isso é?... Isso é uma vida, viu!?... Aí, um dia, eles reformaram o cara. Cara honesto, dedicado, trabalhador, assíduo, sem nunca ter faltado uma única vez ao seu dever… - falava enquanto obrigava o seu isqueiro Dupont a rodar, apertado por  entre os dedos médio e polegar da mão direita, batendo-o na secretária, a cada quarto de rotação. A mão esquerda penteava o cabelo de quando em vez, um tique seu – Resolveram, então, fazer um jantar de despedida, em jeito de homenagem, num bom restaurante do Rio de Janeiro, com Copacabana a perder de vista. – continuou – Todo o mundo compareceu, todo o mundo comeu e bebeu e chegada a hora dos discursos, ofereceram-lhe um relógio todo em ouro!... Um Rolex, ou coisa assim. Imagina só, um relógio todo em ouro!... O cara chorou de alegria. Puxa, tinha valido a pena!...
Eu estava entusiasmado com a história. Parecia começar a entender a oportunidade da mesma e, a cada desenvolvimento, estava mais ansioso pelo seu final. O Sr. Cupello continuou:
- A noite ia longa e, pouco a pouco, todo o mundo foi-se retirando e o cara foi ficando, até restar sozinho no restaurante, juntamente com os empregados. Já tarde, tiveram de fechar as portas e o cara regressou a casa tranquilo, com a sensação do dever cumprido.
Até ali, tudo bem… Sensação do dever cumprido, altas horas da noite, tinha tudo a ver… Claro que sentia que havia muito mais por detrás daquela história mas, não queria sequer atrever-me a desvendá-la antecipadamente. Como estava a ser bom ouvi-la, contada por aquela pessoa com quem tanto aprendia todos os dias.
- E aí, João, aconteceu o inesperado. Já perto de casa, encantado com a noite perfeita que tinha vivido, selando o ciclo que fora sua vida de trabalho… - fez-se silêncio enquanto pegou no telefone – Ana, por favor, pede um cafezinho para mim. João, você toma?
- Obrigado, Sr. Cupello, já tomei. – não me atrevia naquele momento a segurar uma chávena que fosse.
- Do nada, apareceram dois moleques, assim, pequenininhos – fez o gesto com a mão fechada, os dedos unidos e esticados, com a palma virada para baixo, sensivelmente a um metro do chão – empurraram ele, lhe bateram e roubaram o relógio,!... Imagina só, João, o prejuízo!... Imagina o azar do cara!... Você já imaginou, João!?...
Fiquei estupefacto. Que história! Que azar!... Resolvi comentar:
- Realmente… Imagino… Pois, um relógio todo em ouro, assim!?...
- Porra, garoto! Você não entendeu mesmo nada!... – disse o Sr. Cupello. Aí fez-se-me luz. Ele continuou – Qual relógio, qual ouro, João!... Porra, eles roubaram foi sessenta anos da vida do cara!... Sessenta anos, João!...
O Sr. Cupello sabia por que é que estava a contar-me aquela história e eu percebi a mensagem.
Desde então, passaram quase 25 anos.
A história do Sr. Cupello, não mais a esqueci e trabalhei sempre com vontade, mas sem nunca dela me esquecer.
Não voltei a encontrar mais ninguém como ele.
De uma coisa estou certo, trabalhei sempre com dedicação, como se ela fosse necessária para me manter sessenta anos em cada uma das empresas por onde passei.
Não foram precisos tantos para ter tido direito a jantares de despedida nas empresas por onde passei. Aconteceram mais do que uma vez, espontaneamente, organizados por colegas. Não aconteceu em todas e ainda bem.
Os jantares não são o mais importante, nem sequer o dinheiro que se ganha.
A sensação do dever cumprido sim.
É bom nunca esquecermos que há vida para além do dever.
Conforme diz o poeta, “ai que prazer não cumprir um dever”; que faz tanto sentido no dia em que nos cruzamos com alguém que não gosta de nós ou vê no nosso lugar a oportunidade de defender o seu e ou os dos seus.
Se alguma vez me senti roubado? Algumas… Se alguma vez me roubaram? Tantas…
Felizmente que não investi tudo no trabalho, nem sequer me perdi a esbanjar em Rolex’s de ouro…
À pergunta da minha sobrinha, reformulo a resposta:
- Foi certamente por causa do trabalho realizado!

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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Epifania

Dedicado a Esio Poeta.


Infinitamente à mercê das coisas mais improváveis
Tropeço inevitavelmente nas mais inesperadas epifanias de felicidade
Partilhas do belo e do belo, que de tanto belo seriam inimagináveis
Simples, perfeitas, tocantes, de uma tal suavidade…

Começa-se então a conversar, entusiasmo, discussão
Primeiro fala-se da luz e da ausência dela
Podia falar-se de outra coisa qualquer, mas não…

Vai-se direto ao que nos une
Pintura, poesia!?... Pessoa, Camões!?...
Poetas, poetas, Esios, Joões!
Que a tudo o mais é o poeta imune…

Mais livros, aguarelas, exposições,
Lisboa, Piracicaba, Santiago de Compostela,
Versos, rimas, encontros e emoções…

Por fim, um abraço e um até depois
O Chiado continua a ter luz e o eléctrico que passa é amarelo
De novo me entrego à mercê de novas coisas improváveis, ora pois
Partilhas do belo, do belo, do belo e sobretudo do muito belo…

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terça-feira, 21 de outubro de 2014

Mãos de poeta

Mãos de poeta as minhas
Cheias de vida a escrever
Histórias, mentiras mesquinhas
A dor fazendo esquecer

Caneta de ponta afiada
Feita faca de cozinha
Tinta, só tinta, mais nada
Corre nas veias sozinha

Mãos de poeta cretinas
Guardam poesia em segredo
Se firmes, não são as minhas
Que as minhas tremem de medo

Mãos de poeta as minhas
Como gostava de as ter
Dormindo à noite sozinhas
Cansadas de tanto escrever

Mãos de poeta quem dera
Por uma rima a sofrer
Da perfeita inda à espera 
Dando poesia a beber

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Lisboa IX - Chiado

Aguarela e pastel de giz s/ papel - 2014

Sem título (Espontâneo, o título que lhe daria)

Hoje, pintava eu pelo Chiado, quando o Esio Poeta me abordou.
Conversámos sobre várias coisas, pintura, poesia, etc...
O Esio disse Camões e falou de Pessoa.
No final dedicou-me este soneto, de improviso...
Um abraço Esio! Havemos de nos encontrar por aí...


João Rafael - poeta português
Que também leva a vida na pintura
Um sonho de viver - uma loucura
Como se fosse assim... "aquela vez"

Pois é preciso muita intrepidez
Para viver no mundo da aventura
Porém, a alma do João - sua alma é pura
Ainda sonha em sonhos de talvez...

E o poeta caipira brasileiro
Une seu coração aventureiro
Mas a vida é tão cheia de talvezes...

Mas junto do João - poeta luso,
Eu peço aos anjos um pequeno abuso
Novos encontros juntos, outras vezes

Esio Antonio Pezzato - 2014
www.esiopoeta.blogspot.com.br

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quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Dissecação à Portuguesa

Heróis do mar, nobre povo,
Nação valente, imortal

Aprendemos na escola bem cedo
Mas ninguém nos disse afinal
Quem nasceu primeiro
Se a galinha, se o ovo
Porque o saber sempre meteu medo
Assim o é em Portugal

Levantai hoje de novo
O esplendor de Portugal!

Onde o esconderam?
Que ninguém nos leve a mal
Olha-se à volta e não se vislumbra
Ah sim, vejo o povo
Homens e mulheres que morreram
Em nome da mentira nacional

Entre as brumas da memória,
Ó Pátria sente-se a voz

Ainda que muda e amordaçada
Calada em uníssono por todos nós
E neste tenebroso silêncio
Prossegue ruidosa a nossa história
De mentiras inventada
Que através dos tempos se impôs

Dos teus egrégios avós,
Que hão-de guiar-te à vitória!

Por entre mentiras e traições
Doença esta a curta memória
Castrante e deveras recorrente
Herdada de ouvido, sem voz
Repleta de fado e humilhações
Projetada no futuro sem glória

Às armas, às armas!
Sobre a terra, sobre o mar,

E por sobre os nossos cadáveres também
Que a indecência não nos vai calar
A revolta que ferve cá dentro
E que é com sangue suor e lágrimas
Que um destes dias a mal ou a bem
Nos farão rejubilar

Às armas, às armas,
Pela Pátria lutar!

Tanto, tanto para aprender
Haja quem nos queira ensinar
Porque a maior herança de um povo
É a sua história, são os seus karmas
É isso que o faz crescer
Sem nunca esquecer de se questionar

Contra os canhões marchar, marchar!

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segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Beijo de seda

Nada melhor que um beijo p’la manhã
P’ra aconchegar minha alma de verdade
Beijo de seda, quente, como lã
Em tua boca, algodão da intimidade

Se desperto e não sinto esse teu beijo
Desespero e desato a magicar
Porque sonho se não mato o meu desejo
De beijar a tua boca ao acordar?

Línguas que de afastadas se provocam
Resguardadas na boca estão à espera
Da manhã que virá e por quimera

Fará da nossa cama o nosso ninho
Altar branco, lençol feito de linho
Velando beijos loucos que se trocam

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terça-feira, 7 de outubro de 2014

Concerto intimista

Oiço esta música pela enésima vez…
Aqui em cima, no beiral do murete do meu terraço, a água acumula-se, forma gotas, as quais, uma a uma, grossas, gordas, caem em câmara lenta três pisos abaixo, sendo percetível o ruído que fazem ao rebentarem no chão.
A música emociona-me e comparo as gotas de água a lágrimas choradas num qualquer terceiro piso, num qualquer apartamento com histórias para contar…
Recordo um desses lugares. Nele, havia também o som de um violoncelo, como fundo.
Deixo-me transportar no tempo e vou para muito longe daqui.
Uma rapariga, sentada, de pele muito branca e dedos nodosos, com uma aliança muito fina num dos dedos da mão esquerda, abraça o violoncelo com o braço direito e, com o outro afaga as cordas, deslizando os dedos esguios, elegantes, o que lhes deixa marcas profundas.
As pernas saem-lhe fora da cadeira, uma para cada lado.
A perna esquerda, fletida, é permanentemente posta à prova, uma vez que recebe toda a inclinação, força e peso do seu corpo, sustendo ainda o instrumento recostado entre os seus braços.
O pé esquerdo, toca o chão, pressionando a ponta dos dedos, fazendo-se notar os tendões e veias no peito do pé, enquanto o calcanhar é de uma subtileza extrema, elevado a dez centímetros do chão…
A perna direita, alongada, afasta-se da cadeira. O pé, duma beleza estética incrível, toca o chão apenas com o polegar. Pé e perna, desenham uma linha que, ao tocar uma outra , traçada pela inclinação do braço do violoncelo, forma um ângulo obtuso.
O seu braço esquerdo ensaia movimentos belos e o arco é a extensão do que lhe vai na alma.
Umas vezes mergulha-o nas cordas, outras desliza-o nelas, como que patinasse, outras, ainda, fá-lo voar, para depois aterrar nelas com o souplesse de uma pena, ou a violência de um raio que rasga o mar, revolto, em tempestade.
Há já muito que a rapariga colou os seus olhos aos meus e a brancura da sua pele contrasta com o negro dos olhos repletos de sombra esborratada. Há lágrimas a correrem pela sua face, deixando marcas que mais parecem pautas desenhadas na vertical!...
A melodia é estonteante.
Está nua e os sons que tira do violoncelo parecem sair do seu interior, como se de um exorcismo se tratasse…
A elegância da silhueta do seu corpo confunde-se com a beleza das linhas ondulantes do violoncelo, apenas atraiçoada pelo espigão ereto, cravado no chão.
Não resisto a tão bela imagem e vejo-me nos seus braços, feito seu instrumento, tal o prazer que ambos retiramos do momento.
Abraçamo-nos apertados e a melodia sai dos nossos corpos.
E quanto mais nos abraçamos, mais forte ela é, preparando o grande final…
É então que reparo… 
Oh!... Deixou de chover cá fora e as gotas de água no beiral do murete do terraço são agora em menor número, caindo mais espaçadamente lá em baixo.
Aqui em cima, no terraço, dou por mim todo molhado e regresso ao interior da casa. 
O disco chegou ao fim, continuando, no entanto a rodar… Por vezes também assim o é, com a vida.
Empurro o braço do gira-discos até ao centro do disco, para o desligar.
Volto, de imediato, a puxá-lo para trás. Faço girar de novo o prato do gira-discos e poiso a agulha no vinil.
Aí vou eu outra vez, desta vez sem chuva, nem lembranças de lágrimas.

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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Dissonâncias

" Já lá vai o tempo em que íamos em grupo para a praia, num total de 10 a 15 rapazes. Chegados ao local, procurávamos um espaço onde pudéssemos falar à vontade e dar largas ao calão, próprio da linguagem da juventude. Havia um cuidado extremo para não ferirmos quem quer que estivesse à nossa volta, sobretudo senhoras e crianças..."

- Ah puta do caralho! – gritou o miúdo irritante, fazendo jus aos seus tiques  de jovem amaricado e malcriado, no meio das suas amiguinhas deselegantes e descuidadas, pretendendo impressionar todos os que o rodeiam, com a sua rebeldia.
Preparam-se para jogar às cartas em plena esplanada, onde, pela manhã, senhoras e crianças tomam o seu pequeno-almoço, à sombra, desfrutando da relva que se estende à sua frente, sombria até meio, batida depois por um tal sol radioso, até perder de vista.
As raparigas são quatro e eles são dois. Eles estão em minoria, portanto.
Fumam todos como se nunca tivessem feito outra coisa na vida e, a cada intervalo entre uma e outra passa, descansam os cigarros na vertical, encavalitados nas pontas dos dedos de unhas roídas, com os cotovelos pousados nos braços das cadeiras da esplanada.
Energicamente, dando sinais de nervosismo próprio de quem pretende estar à altura do papel de forma convincente, sopram o fumo com tal vigor que mais parecem locomotivas a vapor, em alta combustão.
Discutem marcas de tabaco sem nunca sequer terem fumado um mata-ratos, muito menos experimentado fumar barbas de milho.  Em suma, o tabaco faz-lhes mal…
O miúdo irritante, chama-se Guedes e usa botins pelo tornozelo, debruados a peluche no rebordo do cano curto, o pobrezinho.
Pela exuberância dos gestos e tom de voz elevado que usa, enquanto debita expressões cheias de impropérios, percebe-se que gosta de se ouvir, ao mesmo tempo que denuncia sinais de insegurança e necessidades incessantes de afirmação.
- Vai-te foder! – diz o Guedes, um pouco mais alto, disposto a chocar toda a esplanada.
Leva uma sapa da coleguinha que lhe diz ser mais homem do que ele. Ele encolhe-se…
Ficam os dois contentes. Ela porque o disse, ele porque ouviu e concordou.
Pobre Guedes!...
- Foda-se! – insiste ele – Tinha a manilha seca e ela levou-ma, a puta!... – diz, zangado.
Que dissonante foi este foda-se (!?...). Ó Guedes, não havia necessidade!...
Apeteceu-me dizer-lhe, de imediato, que tivesse cuidado com a verborreia, enquanto ensaiaria o Tico Tico no Fubá, versão à estalada, no seu focinho de menino malcriado.
Está claro que, dada a áspera e desconcertante beleza harmoniosa da verve do Guedes, embelezada por gritinhos e falsetes frequentes, o dia deixou de ser o mesmo e ficou ensombrado para toda a gente ali sentada, em família ou não, sozinha ou acompanhada, não interessa, servindo para concluir que ele, o Guedes, o amigo e as amiguinhas, não prestam para nada!
Mas pronto, o que fazer? Nada!...
Xiça, que estou farto e já nem na “A Bola” me consigo concentrar, tal o discurso dissonante do “gang do Guedes”.
Olha, agora é que foi… O Guedes perdeu o jogo e uma das suas amigas engasgou-se com o fumo do cigarro.
Vou mas é aproveitar para me ir embora, que vem aí bojarda da grossa!…
E eu, que até sou de fácil entrosamento relativamente aos ambientes que me rodeiam, imbuído já no espírito da coisa, não consigo deixar de ter um pensamento a condizer; puta que pariu o Guedes!...
Isto porque não tenho a coragem de o dizer, porque, claro está, o ambiente do local não é o que o “gang do Guedes” gostaria que fosse, senão, já de saída, passaria pela sua mesa e di-lo-ia na cara, com toda a pompa e circunstância:
- Ó Guedes, vai p’ró caralho!... 

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domingo, 5 de outubro de 2014

Sina

Pudesse meu destino ser tão certo
Que toda a minha vida eu viveria
Sem pressa nem pavor do que é incerto
À espera só do que ela me traria

Mas esta triste espera do incerto
Faz com que a nossa vida nunca mude
Trocamos o incerto pelo certo
Em vez de arriscarmos amiúde

Assim cumprimos nós a sina lida
Sem nunca pormos pé em ramo verde
Nem termos a noção do que se perde

Por mais que não se queira ela corre
Até que chega um dia em que se morre
E não se leva nada desta vida

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quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O peso e a leveza

Aí está aquilo que poderia ser
A verdadeira e insustentável leveza do ser

Na esplanada onde estou
Livre como aquele pardal que pula
Como aquele pombo que passa
Na beleza do jardim
No reflexo da vidraça
Daquela  menina que estuda
Ou daquele casal que se abraça

Sinto o peso e a leveza
Da vida livre que levo
Fuga constante do que não quero
Sem que por isso me deixe de surpreender
Pelo inesperado ou pela incerteza
Do que posso talvez ganhar
Ou deitar num repente a perder

Importante é o eterno retorno
Mais importante é viver tudo aquilo que sonho
Ponho os olhos no pombo
Ganho balanço e voo com o pardal
Olho a vidraça e não vislumbro o meu reflexo
Onde está o peso e a leveza afinal?
Desta forma é tudo muito mais complexo

Voar e ser sempre livre, quem me dera
Baixo os olhos e retomo o meu Kundera

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