sexta-feira, 14 de março de 2014

Projeção, sem sombra de dúvida

Estranhamente, há dias bonitos que me fazem sentir muito triste.
Como se a alma tivesse fugido e, com ela, levado a beleza das coisas.
Não restando nada, nem o dom com que alguns de nós fomos bafejados, permitindo-nos ver e sentir a beleza das coisas, mesmo a das mais simples, o que nos deixa alegres, como quando acabados de resolver com sucesso um sistema de equações, repleto de imensas variáveis.
Por exemplo, aqui, no muro mesmo à minha frente, projeta-se a sombra da casa onde me encontro.
Ainda que eu continue aqui fechado, aquela sombra irá transformar-se, tomando inúmeras e diferentes formas, acabando por desaparecer.
Amanhã, estará de volta, se o sol brilhar outra vez.
Poderá não ser à mesma hora… à mesma hora não será, porque a rota do planeta também se altera… O dia continuará a ter sol, mas a sombra, essa, tomará outros contornos.
Nem sequer poderemos afirmar que será a mesma sombra, porque a cada inclinação do sol, a graduação da projeção da sua luz, obrigá-lo-á forçosamente a desenhar novas silhuetas e elas influenciarão a beleza do instante.
Assim é com a minha alma, ora alegre, ora triste e isso preocupa-me.
Aqui e ali, surpreendida por uma brisa, um aroma, uma cor, um sorriso ou mesmo, por um choro.
Esta alma que me acompanha e que às vezes me deixa só.
Esta alma que sendo minha, não o é, recusando viver tão só, dentro de mim, buscando vida e emoção em toda a parte, regressando a mim de vez em quando, por vezes alterada.
Aí está, mesmo agora, bastou este bocadinho entre a minha primeira observação relativamente à sombra da casa onde me encontro fechado, projetada sobre a parede do muro defronte e o momento em que me perdi no enfiamento do aparo da caneta com que escrevo e pronto, ela já não é a mesma.
O sol ilumina, agora, a parte que estava sombria ainda há pouco e essa sombra, que o era ainda agora, é tão brilhante, ao ponto de me encandear a visão, projetando-me na face, a luz proveniente da cal branca que cobre a parede, luz feita reflexo.
Os meus olhos doem-me. A minha alma não, porque não está aqui. O meu corpo sim, no mesmo local, permanece fechado, dentro desta casa sombria.
Lá fora, o dia está lindo.
Daqui, consigo aperceber-me do calor que faz pelo bater das asas daquela borboleta, que não abandona o sol, colada que está à parede. A borboleta não tem alma, mas bate as asas… e voa para longe, como a minha alma.
A orla trémula e quente no horizonte, deformando a linha do alcatrão, está de acordo com a pouca vontade que tenho de ver o que está para além dela. Tudo é vago e fosco
É esse o domínio para a minha alma livre, feliz e repleta de imaginação.
Talvez um destes dias possa eu ser assim e acompanhe de perto a minha alma.
Quem sabe, um destes dias, mesmo que esteja um dia feio, rompa eu o meu casulo e as minhas asas se confundam, então, com as daquela borboleta, que, por sinal, já debandou da parede.
Quem sabe, um destes dias, a minha alma transporte o meu corpo e eu não volte a sentir-me triste…
Que sabe, um destes dias, o sol brilhe e a linha do horizonte seja tão nítida, que faça com que a imaginação da minha alma se misture com a minha alegria e juntas, de mão dada com o meu corpo, atravessem a barreira imposta pelo limite do alcatrão quente e negro.
Nesse dia, deixarei de estar fechado nesta casa e só restará um reflexo de mim, projetado na parede em frente, sem qualquer sombra.
O sol terá a sua inclinação específica, a terra também e eu observá-los-ei, do universo… Ao sol, à terra e ao reflexo…
Quanto à dificuldade de me sentir triste num dia tão bonito, o problema nunca terá existido.
Ficará assim a equação resolvida. Sem sombra de dúvida…

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2 comentários:

a_ciganita disse...

Engraçada essa tua forma de esmiuçares os sentimentos. Desenhas traços cheios de vida e as formas que afirmas visualizar apoderam-se de ti e tu delas, em constantes mutações desses sentires projectados e transformados ao milionésimo segundo. Não ficas pela simples visão: és um autêntico alquimista das emoções.

Unknown disse...

Quando uma crianca anda sozinha, com as costas viradas para o Sol, e' sinal de que esta perdida. Mesmo que suba ao mais alto ponto, se continua virada para o Sol, continuara perdida. Enfrenta-lo e deixar a sombra para tras, e' a unica forma de encontrar o caminho para casa. Como a borboleta.