segunda-feira, 3 de março de 2014

Passeio II

Hoje tirei o dia para mim.
Há muito tempo que andava para o fazer, mas, ou por isto, ou por aquilo, metia-se sempre qualquer coisa e, assim, fui adiando a oportunidade.
De hoje não passou, finalmente.
Acordei feliz, ansioso pelo que ia acontecer.
Combinei antecipadamente com a minha filha como iríamos organizar as pequenas tarefas relacionadas com as refeições, uma vez que eu não estaria o dia todo. Alertei-a, como sempre faço, para a necessidade de manter o telemóvel ligado e assegurámo-nos de que tinha algum dinheiro. Verifiquei portas e janelas e saí.
Entrei no carro, ajeitei-me e suspirei, antes de dar a volta à chave.
A perspectiva de um dia bem passado, pela frente, deixava-me entusiasmado e ao mesmo tempo nervoso, com um sorriso nos olhos e a boca a acompanhar.
Assim, atravessei a ponte, com o Tejo como berma, a levar-me ao meu destino.
A luz do sol incidindo por sobre as águas espelhadas do rio produzia reflexos que se assemelhavam a silhuetas tridimensionais, quase vivas…
Eram dez e dez da manhã, a hora precisa do meu nascimento, há quarenta e oito anos atrás.
Olhei para o lado e uma silhueta viva ali estava, sentada ao meu lado, à hora marcada.
Havia combinado com a minha mãe levá-la a passear comigo. Há quanto tempo tal não acontecia!...
Muitas vezes, tinha atravessado aquela ponte com a mesma sensação, a sensação de não me encontrar só dentro do carro. Mas era só sensação. Desta vez não, era real. Ali estava a minha querida mãe.
Não me perguntem porquê, mas nem sequer nos cumprimentámos.
Foi como se a conversa viesse lá detrás, ao ponto de fazer qualquer um pensar que seríamos companheiros de viagem desde sempre. E não estariam enganados…
A minha mãe estava linda como sempre.
O brilho dos seus olhos, mais o brilho do seu cabelo, confundiam-se com o brilho das águas do Tejo, deixando-me na dúvida sobre qual deles provocava tal luz!?...
E assim fomos os dois, sentados lado a lado no Mini, o carro de sonho da minha infância.
Sem falarmos e nem sequer termos pensado sequer qual era o nosso destino, demos connosco a caminho de Sintra, passeio que a minha mãe adorava.
Chegados a S. Pedro, fez aquilo que fazia sempre quando, ainda pequeninos, eu e o meu irmão, passeávamos de carro com os nossos pais, descia o vidro da porta e dizia-nos:
- Filhos, respirem este ar que vos faz tão bem!
Hoje, repetiu o gesto, proferindo as mesmas palavras. E eu respirei fundo… E o ar entrou-me pelo nariz, circulou nos meus pulmões e purificou-me a alma!
Há quanto tempo eu não passeava com a minha mãe! Assim, os dois, em Sintra…
Um dos últimos passeios, se não o último, foi a S. João do Estoril, para vermos o mar, na Praia da Poça.
Sugeri, então, que fizéssemos uma paragem no largo de Sintra, junto ao palácio da vila, subíssemos a pé e entrássemos na Piriquita a fim de comermos um travesseiro, ainda antes do almoço.
Já sentados e atendidos, com a elegância em tudo o que fazia, segurou o folhado envolto num guardanapo de papel, levou-o à boca, saboreando-o em seguida, como quem saboreia a própria vida em cada simples momento que a mesma nos oferece.
Os olhos diziam tudo. A minha mãe estava feliz por estarmos ali  juntos, de novo.
Falámos muito, mesmo muito…
Contei-lhe histórias e ela contou-me histórias também. Falou do meu pai, dos meus tios, dos meus avós e de amigos também…
Pela primeira vez não estava preocupada com o meu pai, nomeadamente com a hora do regresso, porque sabia que ele estava bem acompanhado e feliz, no céu.
Aproveitei então para encostar a minha cabeça no seu ombro.
Que saudades tinha de um momento como aquele!
Sentir o seu respirar perto de mim e a cada expiração sua poder aperceber-me da leveza do seu perfume, que parecia sair de dentro de si…
Voltámos ao carro, de braço dado. A rua da Piriquita é íngreme e receávamos que a minha mãe pudesse desequilibrar-se. Disse-lhe que se agarrasse a mim e desejei que o fizesse para sempre.
Rumámos a Colares.
Quis ver a casa onde vivi durante algum tempo, nos anos noventa.
Adorou e tirou uma fotografia comigo, encostados à cancela do jardim, com a casa como fundo.
A minha mãe adorou aquela casa e várias foram as vezes que ali foi, guiada por mim, ou pelo meu irmão, onde passou momentos que a fizeram sentir-se feliz.
Com o sol a ter passado já o meio-dia, optámos por almoçar em Almoçageme.
Costumávamos ir lá bastantes vezes e ficávamos cá fora, a almoçar debaixo da latada, sempre que o tempo estava agradável. Hoje, apesar do sol, fazia frio e, por isso, decidimos ficar lá dentro, na sala, junto à salamandra.
Mais conversa, mais saudade matada e o desejo de não nos afastarmos nunca.
A minha mãe estava preocupada por eu estar sozinho, querendo saber se eu me encontrava bem. Eu fiz-lhe entender que sim, que quando me sinto mais só ou mais triste, pego no meu caderno e vou para a pastelaria, ou para qualquer outro lugar e escrevo, escrevo… recordo todos aqueles que amo, todos aqueles que amei e isso reconforta-me… porque quando amamos alguém nunca estamos sós…
O almoço durou até às tantas e a minha mãe não ficou convencida.
O sol iniciou o seu movimento descendente, tombando desmaiado nos telhados das casas, por sobre a Praia da Adraga.
Com ele, o brilho dos cabelos da minha mãe, mas o dos olhos não! Esse, manteve-se e manter-se-á para sempre, faça sol ou não, esteja eu onde estiver, mesmo que esteja escuro.
Percorremos o caminho de regresso pela Azóia, com o Penedo lá no cimo. Atravessámos o Guincho com o sol já a chorar as suas lágrimas, num misto de alegria e tristeza, diluindo-se sobre as águas do oceano.
Regressámos felizes e ainda houve tempo para a minha mãe acenar um adeus à esplanada da Praia da Poça, aquela onde passeáramos pela última vez, talvez…
A travessia da ponte é mais bonita de manhã, no sentido Norte/Sul, com a luz do sol da manhã a incidir sobre Lisboa, mas o regresso ao final da tarde, início da noite, com os últimos raios do sol e as luzinhas da cidade no horizonte, observados através do retrovisor, tem também um encanto especial.
O reboliço da cidade fica lá atrás e eu posso regressar tranquilo a casa.
Hoje, com esse momento, ficou também o sonho de um dia bem passado, em que fiz o que há muito desejava fazer… Tirar um dia só para mim!...
A meio da ponte, olhei para o lado e vi uma luz a subir no céu.
Baixei a cabeça, curvei as costas, para vez mais alto através do pára-brisas do Mini e observei uma estrela a juntar-se a outras tantas e eu sorri.
No meu carro, ficou no ar o perfume da minha mãe…
A poucos quilómetros da margem continuava a sorrir, a sorrir com vontade, a sorrir cada vez mais, por fim, a rir, a rir alto...
Foi então que a menina da pastelaria me tocou no ombro, perguntando-me:
- Sr. João, está a rir-se de quê!?...

… /…



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