domingo, 23 de março de 2014

Magia

Havia magia em tudo o que fazíamos naquele tempo.
Havia um momento, havia um sentimento. Tudo em redor completava e engrandecia a execução da tarefa.
Por exemplo, lembro-me da hora de fazer os trabalhos de casa, encomendados pela escola, esse momento era acompanhado por todo um ritual…
Sentado à mesa da casa de jantar, que naquele tempo os meninos não tinham secretária no quarto, com a pasta de cabedal com pega resistente, fecho metálico de mola, ao centro, e duas presilhas, uma de cada lado, ao lado da cadeira, pousada no chão, soerguia-a e começava por retirar os livros e os cadernos do seu interior, que colocava em cima da mesa.
A cada objecto que retirava de dentro da pasta, ficava a pairar no ar um odor a cabedal, misturado com o cheiro a papel e tintas, do caderno e dos livros, a borracha e ainda a madeira, do estojo, cuja tampa me servia de régua.
A tampa era em balsa envernizada e nela gravava o meu nome e a classe em que andava, com os bicos da pequena tesoura de trabalhos manuais, ou mesmo com o bico de uma esferográfica, vermelha certamente, que a azul era proibida, uma vez que éramos obrigados a utilizar caneta de tinta permanente. No centro da tampa do estojo, um pequeno autocolante com uma figura infantil.
Pousado que era o estojo na mesa, à frente do caderno, começava por aparar o lápis, o que juntava um novo odor à ao ambiente, o das aparas, mais o do pó da mina de carvão do lápis. Então, se a borracha era daquelas com cheirinho a morango!...
Não quero mentir, mas tenho ideia que às vezes me enganava propositadamente para ter a oportunidade de apagar e assim desfrutar daquela sensação de odor a morango no ar, no papel e nos dedos!
Havia um ritual. Primeiro as tarefas fáceis, ou melhor, as que não exigiam apurado raciocínio, embora requeressem frescura, destreza e concentração.
Falo, neste caso, das cópias, que eram avaliadas pela limpeza da folha, sem marcas de erros ou ressalvas, pela beleza, equilíbrio e balanço da caligrafia, reforçado no final pela transcrição do abecedário, primeiro em letras minúsculas e depois em letras maiúsculas, rematados com um desenho num intervalo de seis linhas, delineadas a esferográfica, na pauta do caderno, com a tampa do estojo a fazer de régua.
Seguia-se o exercício de caligrafia. Uma frase que deveria ser escrita repetidas vezes. Recordo ainda hoje uma delas, pela altura do Natal, “Os sinos tocam! Chegou o Natal!”. No final, mais um desenho.
Só por fim, as contas e as tabuadas, altura em que já farto dos trabalhos executados até então, mostrava sinais de cansaço, arrastando, por vezes, a tarefa até perto da hora do jantar.
Recordo a minha mãe na cozinha a ajudar-me, a incentivar-me, enquanto apurava o tempero do jantar e me dava uma colher a experimentar.
Era aí que entrava a magia dos aromas, ajudando a que aqueles momentos fossem desejados a cada final de tarde.
Momentos que ainda hoje se mantêm vivos dentro de mim e que me ajudaram a não só fixar, mas a entender a tabuada e, por isso, ainda hoje, quando a soletro, sinto aromas que me abrem o apetite…
São os cheiros dos temperos misturados com o da borracha desfeita, sempre que apagava uma conta errada, ou corrigia uma tabuada mal calculada.
Concluídos os trabalhos, era tempo de arrumar tudo.
Livros fechados para dentro da pasta, cadernos também. Caneta, lápis, borracha e afia, dentro do estojo, fechado com a tampa, que deslizava na calha cavada na madeira. As canetas de filtro, espalhadas, eram arrumadas dentro da bolsa de plástico transparente. A rematar o estalinho da mola, que era o seu fecho.
Agora sim, o dever estava concluído!
Podíamos então jantar tranquilos e depois havia ainda tempo para brincar um bocadinho, antes de ir dormir.
No dia seguinte, na escola, a professora corrigia os trabalhos.
Hoje, passados tantos anos, ainda me recordo de tudo e acredito que, na escola, quando a professora abria o meu caderno, também ela sentia os aromas que ajudavam ao resultado final das tarefas.
Como que por magia!...

... /...

Nenhum comentário: