quarta-feira, 19 de março de 2014

Falsa identidade

Nem sei como hei-de começar…
Mas sei que há coisas muito feias que fazemos em vida e que são verdadeiros maus exemplos para todos.
Coisas que nos envergonham e das quais nos arrependemos. 
Ainda bem que podemos experimentar esse sentimento, o do arrependimento. Não resolve nada, mas deixa-nos em paz connosco, aparentemente.
Mas, às vezes, fazêmo-las, sem que para isso tenhamos contribuído voluntariamente, apenas não conseguimos recusá-las, não há como resistir-lhes, tal a doçura do momento e a noção séria que temos de estar a contribuir para a felicidade de outros.
Foi o que se passou comigo, há uns anos atrás, em Cuba.
A coisa feia? Chama-se usurpação de identidade!... Mas que valeu a pena, ai isso valeu…
Todos sabemos que o futebol é um fenómeno social à escala planetária e até mesmo um país com características tão próprias como o é Cuba, disso, não foge à regra.
Os seus meninos jogam-no na rua, muitos deles equipados a rigor, fruto da oferta dos turistas que por ali passam. Muitos destes, guardam o endereço de uma qualquer família de Havana, Santa Clara ou Varadero, registado no final de mais um jantar caseiro, ao qual chamam “paladar”. Fica assim prometido, em troca da simpatia com que foram recebidos, o envio de uma camisola com o nome do craque favorito estampado nas costas.
Naquele ano ido, um dos futebolistas mais mediáticos de então era, nem mais nem menos, o nosso Figo, orgulho nacional, numa época em que Cristiano Ronaldo ainda dava os seus primeiros passos no Sporting Clube de Portugal.
E era para nós, portugueses, uma honra, por todo o lado que passávamos, de Portugal à China, da Austrália à Rússia, da Índia às Caraíbas, podermos ouvir falar de Figo ou de Rui Costa e vermos as suas camisolas, do Real Madrid e do AC Milan, com os seus nomes tatuados, bem visíveis, nas costas de petizes e graúdos.
Em Cuba, por exemplo, o fenómeno Figo era mais popular, fruto da influência hispânica, certamente.
Ora então, quis a ironia que, à época, eu usasse um corte de cabelo idêntico ao que o Figo usava. Não que tivéssemos copiado um pelo outro, lógico, mas não deixava de ser engraçado ir na rua e ouvir variados comentários sobre a semelhança das melenas.
O insólito estava, no entanto, para acontecer.
Adepto madridista confesso, sendo tal paixão anterior à ida do Figo para Madrid, colecionei sempre artigos referentes ao grandioso Real Madrid.
No meu guarda-roupa de viagens ou férias, transportei sempre algumas camisolas de clubes dos quais gosto, para além das do clube do meu coração, o Glorioso Benfica! Assim sendo, não fugi à regra e, para Cuba, levei duas camisolas, a do Benfica e a do Real Madrid.  
Naquela tarde, estava programado irmos até ao centro da cidade visitar a Catedral de San Cristobal e o Mercado de San José, conhecido pelas suas coloridas telas e artesanato variado.
Era o penúltimo dia da estadia e toda a gente pretendia adquirir bonitas telas e outros objetos, por entre centenas de trabalhos coloridos, bastante reveladores da cultura cubana.
À porta do hotel, o autocarro esperava os elementos do grupo a fim de partir em direção ao destino, aproveitando estes o traçado do percurso para se deleitarem com o trajeto ao longo do Malecón, idílico passeio marítimo, ao longo de Havana, virado para o Golfo do México.
Recordarei para sempre as imagens das gentes habaneras, umas sentadas, outras encostadas ao murete de pedra, olhando o horizonte, envoltas num sonho verdadeiramente sonhado, só comparável ao sonho dos amantes apaixonados, beijando-se à luz do sol de final de tarde, já condenado ao ocaso, complacente com o seu destino.
Quando me aproximei do autocarro, trazendo no corpo a camiseta do Real Madrid, que vestira pela manhã, falaram-me do reboliço que tinha acontecido há pouco, imediatamente controlado pelos seguranças do hotel.
Um grupo de garotos tinha estado junto do autocarro, à espera de ver o Figo e assim conseguir um autógrafo do craque! Tinham-lhes dito que ele estava ali hospedado.
Não queria acreditar no que me contavam!? Como era possível!? Brincavam comigo, com certeza.
Nunca tal me tinha acontecido!... Comentarem-me que sim, que fazia lembrar o Figo, ainda mais vestido assim, com a camiseta do Real Madrid, vá que não vá, agora, daí até se aglomerarem à porta do hotel, convencidos de que era ele em carne e osso, que se preparava para entrar no autocarro, era quase surrealista!?
Imaginar a situação, fez-me pensar naqueles miúdos, ávidos por viverem uma emoção tão forte, perpetuando-se nas suas vidas… O Figo, ali, ao pé deles! A oportunidade de guardarem para sempre um autógrafo seu como garantia de um dia terem estado tão perto do mundo real que existe para além do Oceano Atlântico e do Mar das Caraíbas.
E que situação, ao fim e ao cabo, tão simples e fácil de acreditar. Afinal, tratava-se de um grupo de portugueses em Cuba, logo, lógico, Portugal é tão pequenino que, nada mais natural que Figo pudesse fazer parte desse pequeno grupo de cinquenta pessoas!?
Entrei no autocarro e fiz o passeio ao longo do Malecón com um sorriso nos lábios, como que beijado por uma aragem na alma, compatível com a brisa marítima que se fazia sentir no exterior do autocarro.
Decididamente Cuba é para mim a terra dos sonhos e, hoje em dia, sempre que recordo tal episódio, sinto que fiz parte de um capítulo inesquecível e quiçá deveras importante na vida daquele grupo de rapazes…
Por mim, jamais esquecerei que, como por magia, fui o Figo para aquela gente!...
As notícias passam de boca em boca e bem depressa.
Vim a saber, mais tarde, que, pela manhã, tinha sido visto no hotel, provavelmente por um trabalhador do mesmo, com a camisola do Real Madrid. Crédulo ou não, simplesmente por brincadeira, quem sabe, o boato espalhou-se e daí ao ajuntamento à porta, por parte dos miúdos, foi um instante…
Aquele Malecón é o paradigma dos sonhos.
Quantos sonhos ali morrem, afogados na imensidão do mar que beija a velha Havana! Quantos deles ali ganham asas, voando para além do que os olhos avistam? Quantos deles acompanharam aquele autocarro, que viajava entre o hotel e a Praça da Catedral, provocados por um tal passageiro chamado João Rafael em forma de Figo!?
O insólito, no entanto, ainda estava para acontecer…
Chegado ao destino, o autocarro, por entre manobras, estacionou junto ao passeio e, no seu interior, todos nos levantámos, preparando-nos  para sairmos, entre encontrões e tentativas de pegar os casacos e as câmaras fotográficas, depositadas nas prateleiras, por sobre os bancos.
Já compostos e na posse perfeita de tais objetos, foi-se formando a habitual fila indiana, num só sentido, enquanto o condutor não tomou a decisão de abrir a porta traseira, facilitando a saída de todos mas gerando, uma vez mais a confusão, com a mudança de direção por parte de alguns. Aí, uns foram para trás, outros insistiram na saída pela porta da frente. Foi o meu caso.
E eis que aconteceu o imprevisto!...
O meu amigo José Moreira, que já tinha saído, voltou atrás, subiu os dois degraus do autocarro, olhou-me nos olhos, com um sorriso do tamanho do Malecón e disse, em jeito de resposta a alguém no exterior do autocarro:
- O Figo está ali!...
Todo o grupo se apecebeu, de imediato, do que se passava… O passeio estava repleto de miúdos a perguntarem pelo Figo, com papéis e canetas nas mãos.
É que, no hotel, como medida para os demoverem, tinham-lhes dito que o autocarro ia para o Mercado de San Jose.
É verdade!... Para aqueles miúdos, o sonho não tinha terminado no momento em que os seguranças do hotel os tinham obrigado a debandarem.
Uma vez mais, eles foram a correr atrás do sonho. Cruzaram a cidade de uma ponta à outra, possivelmente ao longo do Malecón, para conseguirem um autógrafo de um falso Figo, que para eles era tão verdadeiro, o original!...
Depois disto, o José Moreira falou-me:
- Joãozinho, estás tramado, vais ter de dar autógrafos!...
Naquele momento percebi que o sonho, ainda que sonho, por vezes, move muito mais do que a realidade dura e cruel que o tempo marca. Percebi que, naquele momento, ainda que pudesse, pela proximidade física, criar alguma desconfiança nas suas cabeças, era, na mesma, importante para eles o meu teatro e mesmo que me colocassem uma qualquer bola nos pés, a fim de comprovarem a minha habilidade, ou a fim de me descobrirem a careca, estou certo que, nesse momento, seria iluminado pelo anjo dos sonhos e arrancaria uma jogada elegante, digna do verdadeiro Figo!
Aquele momento foi sublime e ternurento...
E ali fiquei, algum tempo, a distribuir autógrafos, apertos de mão e muitos sorrisos, com a miudagem à minha volta.
A minha única preocupação era não decepcionar aqueles miúdos.
E lá foram eles, felizes sem saberem que guardavam um autógrafo sentido e verdadeiro de um falso Figo.

... /...



Um comentário:

Unknown disse...

Mentira Piedosa,aquela que aquece o coracao do outro,alivia sofrimento,evita desilusao ou mantem um sonho vivo.
Geralmente traz a quem a pratica, o sentimento de humilde grandiosidade , previle'gio dos deuses.