sábado, 8 de março de 2014

Ingrato, o tempo que relativiza

Estive ontem sentado à frente da televisão a ver a Gala RTP de entrega dos prémios Lumen, coisa que não fazia há muito tempo, a não ser quando joga o meu Benfica, ou Portugal e para seguir as notícias que, normalmente, me deixam deprimido e triste.
Ontem à noite foi diferente.
Sentei-me no sofá, após ter jantado com a minha filha e com a minha neta e por ali fiquei a rever caras de quem gosto, umas mais, outras menos e outras de quem não gosto nada.
Pude ouvir e comparar a riqueza de alguns discursos de agradecimento e de homenagem apimentados com algumas alfinetadas cirúrgicas, a palavras vazias, de circunstância, desprovidas de memória e de qualquer humildade.
Gostei de ver a Ana Bola, a Rueff, a Maria Vieira, o Herman, o Monchique e o Manuel Marques a subirem ao palco, em reconhecimento do seu trabalho em prol do serviço público, porque fazer rir um povo triste nos dias de hoje, é disso que se trata, mas senti a falta, por exemplo, do Fernando Mendes, que há onze anos é companhia divertida de milhões de portugueses que se reveem no seu humor, trabalho elogiado até no estrangeiro.
Fiquei satisfeito por ver ainda reconhecida como melhor série de ficção de sempre “Conta-me como foi” que, pelo seu argumento, não deveria apagar-se nunca da nossa memória colectiva, por sinal, às vezes muito curta.
Confirmei, uma vez mais, como se fosse necessário, a excelência do profissionalismo do Júlio Isidro, merecedor de um prémio também, pela sua intocável carreira, reforçada pela constante descoberta e divulgação de talentos.
Um verdadeiro senhor televisão!
Porque gosto de ver reconhecido o trabalho dos outros, ou melhor ainda, dos que o merecem, adorei as três homenagens da noite, a homenagem a Eunice Muñoz, figura indelével do teatro e da televisão em Portugal, a homenagem a Herman José, que nos ensinou a observarmos o que nos rodeia e nos mostrou tantas formas diferentes e interessantes de rir e, finalmente a terceira, a uma figura menos mediática, cujo nome nos entrou, contudo, diariamente em casa, durante cinquenta anos, praticamente sem rosto. Refiro-me a Luís Andrade, pai da Serenella, do Hugo e do Ricardo.
Estávamos em 1977.
Tinha terminado o segundo ano do ciclo preparatório e estudava no Colégio Manuel Bernardes, no Paço do Lumiar.
As aulas começaram, como todos os anos, em Outubro, motivo de agitação para todos, resultante de mais um início de ano escolar, sinónimo de curiosidade relativamente a novos professores e, sobretudo, ao que dizia respeito a novos colegas.
Mais a mais, o Colégio Manuel Bernardes há pouco tempo que tinha passado a regime misto, com as raparigas, a cada ano, a serem em maior número, para alegria dos rapazes.
Na altura, com doze anos, não fugia à regra e rapidamente me entusiasmei com uma colega de turma.
A par, reforcei amizades com colegas que vinham já do ano anterior e naturalmente fiz novos amigos. Foram os casos do Ricardo e do Hugo Andrade.
Recordo os dois como se fosse hoje.
No início, muito sossegados no recreio, mas de sorriso fácil e cordialidade extrema, enquanto colegas. Foi empatia imediata.
Lembro-me que o Ricardo tinha o cabelo mais claro e fazia um movimento com a cabeça, ao mesmo tempo que piscava os olhos. Um pequeno tique que lhe dava uma certa graça.
Embora gémeos, o Hugo era mais tranquilo e gostávamos de falar os dois. A sua voz era mais rouca, recordo.
Ah, a gargalhada do Ricardo era inconfundível e cativava os colegas.
O ano foi avançando e a nossa amizade também, reforçada pelos inúmeros jogos de futebol ao fundo do recreio, junto ao pavilhão dos Trabalhos Oficinais e na Quinta do Paço, à hora do almoço.
E nisso os manos eram dois virtuosos. Que orgulho sentia neles, os meus amigos, ao vê-los jogar!
O Ricardo conseguia ser mais entusiasmante e eu deliciava-me a vê-los driblar.
De estaturas pequenas, movimentavam-se com uma velocidade incrível!
O Ricardo e o Hugo, se não estou em erro, jogaram num clube que existia para os lados da Alameda das Linhas de Torres, a seguir ao velho Estádio José de Alvalade, junto à Avenida Raínha Dona Amélia, onde moravam, se a memória não me atraiçoa... O clube de que falo era “Os Mouros”.
Recordo que certo dia fui ter com eles ao seu bairro, dia em que conheci de relance a irmã Serenella, mais velha do que nós e muito bonita, assim como a mãe.
Nunca mais a vi, a não ser anos mais tarde, na televisão.
Transportei para ela a amizade que detinha pelos irmãos. Poderei dizer, pois, que nutri sempre uma amizade virtual pela Serenella Andrade!
Nesse mesmo dia, tive também o prazer de conhecer aquela que foi para mim a melhor jogadora de futebol, a Kikas, que jogava futebol com eles, na rua.
Foram o Ricardo e o Hugo que ma apresentaram e eu fiquei maravilhado ao ver uma rapariga jogar futebol tão bem ou melhor que muitos rapazes. É que os tempos não eram ainda dessas coisas, no Portugal de então.
Quis o destino que no ano seguinte me cruzasse com a Kikas no Colégio Moderno, colegas de turma durante dois anos. Jogámos lado a lado, nas equipas do oitavo e nono anos e ambos representámos a selecção do colégio.
De uma coisa não me esqueço, quando nos encontrámos no Colégio Moderno, foi a Kikas que se lembrou de mim, alguém que ela só tinha visto uma vez, por uns minutos, naquele dia, lá no bairro.
Deixámos de ter contacto em 1980 e reencontrei-a mais tarde, há cerca de oito anos, na Aldeia do Meco. Reconheceu-me, falámos, mas o tempo ditou o afastamento. Nem números de telefones trocámos. O tempo tem destas coisas…
Do Ricardo e do Hugo, ficou a amizade sincera do ano intenso em que convivemos, estudando e, sobretudo brincando muito, como daquela vez, num aniversário meu, em que o Hugo e o Ricardo passaram o dia em minha casa e corremos o dia todo no jardim e na nossa quinta também.
Desse dia, guardo as fotografias, cuidadosamente conservadas num dos álbuns de família.
Através dos anos fui acompanhando e lendo sobre a carreira do pai, da irmã e fiquei contente por saber que também eles tinham entrado no mundo da televisão.
Ao longo do tempo, diversas vezes me recordei do entusiasmo que senti, uma vez em que o Hugo me falou da possibilidade de se vir a realizar um concurso de “A Visita da Cornélia” para miúdos e que podia ser uma boa ideia eu concorrer para jurado…
Ficámos pelo sonho e ainda hoje sorrio quando me recordo disso.
De volta ao dia de ontem, gostei de rever o Hugo na plateia e percebi o quão emocionado estava com a justa homenagem prestada ao pai.
A imagem do seu silêncio e tranquilidade foi, para mim, uma das mais fortes e conseguidas da noite.
Apeteceu-me dar-lhe um abraço e perguntar por ele, pelo irmão e podermos recordar o tempo que atrás retratei, mas o tempo é ingrato…
O mesmo tempo que relativiza a importância das coisas.
Há sensivelmente três anos, procurei o Hugo e o Ricardo no facebook, na tentativa de reavivarmos as memórias boas do passado. Encontrei o Hugo e enviei-lhe um abraço, extensivo ao irmão. Identifiquei-me e aguardei resposta à minha mensagem.
Chegou ao fim de algumas semanas e que contente fiquei.
O Hugo foi simpático. Agradeceu o meu contacto e lamentou-se do facto da sua memória não ser a melhor e por vezes sentir que ela o atraiçoa. O Hugo não se lembrava de mim!...
Não faz mal, Hugo, não precisamos lembrar-nos de tudo, mas sim apenas do que é importante…
Ontem, no teu silêncio e no teu olhar, estavam patentes todas as recordações que guardas do teu pai e que te acompanharão ao longo da vida. Gostei de ver e emocionei-me.
Por sua vez, espectáculos como os de ontem são importantes para não nos esquecermos de que em determinadas épocas das nossas vidas, existiram momentos importantes, espectáculos que nos divertiram, programas de televisão que nos marcaram, mas que o mais importante de tudo isso são as pessoas envolvidas, desde aqueles que dão a cara e entram pelas nossas casas adentro até àqueles que, por detrás das câmaras fazem as coisas acontecer e que por isso devem ser lembrados também, pese o ditado “longe da vista, longe do coração”…
Depois o tempo relativiza tudo e infelizmente, daqui a muitos anos é possível que poucos se lembrem de quem foi quem…
 Assim é, na nossa vida também… E que bom é quando a memória não nos atraiçoa.

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Um comentário:

Unknown disse...

Ha os que se genuinamente esquecem porque o coracao nao os obriga a guardar lugar para recordacoes;ha os que se nao querem lembrar porque sao destituidos de importancia e nao reconhecem a importancia de nada;ha os que se lembram porque o coracao assim comanda,porque sao importantes mesmo sem o saberem, dao importancia aos outros e sao valiosos porque manteem viva a memoria mesmo dos que esquecem ,mesmo dos que nao merecem.Esses sao eles os verdadeiramente RICOS.