Mania de complicar o que é simples…
Ou, como uma
história nos reporta a outra e essa outra a uma terceira e a conclusão de todas
elas é a mesma… Para quê complicar?...
O filme não
é grande espingarda mas, o facto de ter Liam Neeson e Pierce Brosnan como
protagonistas, fez-me parar o zaping iniciado, no canal Hollywood e passar
algum tempo da minha tarde de domingo refastelado num dos sofás da sala, enquanto
a minha filha, no outro, se esforçava para acompanhar o filme, fazendo-me,
assim, companhia. Entre um ou outro comentário meu, lá ia ela encontrando uns
minutos para dormitar.
Conforme já
referi, o filme, embora passado no tempo em que a bala era a lei, não é grande espingarda. O seu título, Seraphim Falls, data de 2006 e em português
recebeu o nome de “Duelo de assassinos”. A propósito, para quê complicar?...
O enredo traduz
a caçada exercida por um coronel da Confederação (Liam Neeson) a um soldado da
União (Pierce Brosnan), após a Guerra Civil Americana, por volta de 1860,
explorando temas civis, tais como a violência, a vingança, a sobrevivência
humana, a guerra e seus traumas. Toda a trama se passa no faroeste, sendo
visível a preocupação do fiel retrato da época.
Em determinado
momento fui atraiçoado!...
Quando já
tinha entrado em todo este ambiente (só falta mesmo a televisão interativa
reproduzir os respectivos odores), com palavras carregadas de mau hálito,
proferidas bem perto da cara uns dos outros, cavalos mal tratados, personagens
sem verem banho há meses, cheiro a pólvora e sangue, palavreado rude e
ordinário, em consonância, eis que sou confrontado com o insólito!...
Em plena
cena de suspense, ocasião em que Pierce Brosnan se encontra refém num
acampamento de operários que construíam uma linha de caminho-de-ferro e é
surpreendido pela chegada de Liam Neeson ao local, em sua perseguição, este, caminhando
por entre as tendas ali existentes, vira-se para os seus dois companheiros de
caçada e ordena-lhes:
- Sigam que
eu já vos apanho. Tenho de ir fazer chichi!...
Assim, sem
mais nem menos!?... Ou melhor, a legendagem matou-me o filme com esta
preciosidade! Um pistoleiro não faz chichi!...
Fazer chichi!?...
Não podia ao menos ser “vou ali verter águas”, “vou mudar a água às azeitonas”
Ok, o filme é passado no faroeste e não no Alentejo… Ou porque não simplesmente
“vou ali mijar”!?... Para quê complicar?...
Foi aqui que
comentei alto e a minha filha abriu os olhos.
Este momento
insólito transportou-me para um episódio que vivi, corria o ano de 1987,
encontrando-me na ocasião a cumprir o serviço militar nas fileiras do exército
português. Agora sou eu que estou a complicar! Estava na tropa!... Melhor
assim!...
Depois de cumprida a recruta, fiquei aquartelado na Graça e prestei serviço na DSFOE
(Direção dos Serviços, Fortificações e Obras do Exército), ao Campo de Sta.
Clara, para descomplicar, junto à Feira da Ladra.
Ora, de
quinze em quinze dias, à terça-feira, se não me engano, todos os militares ali
aquartelados, prestando serviço nas diversas instituições do exército, tinham
de se apresentar no Quartel da Graça para a formatura quinzenal, onde o nosso
Comandante de Companhia passava revista às tropas.
O nosso
capitão era tido como um terror.
Parecia o
capitão Haddock, dos livros do Tintin, com a sua barba cerrada e feitio
refilão, era pequenino e tinha a alcunha do Ayatola. À parte disto, tinha um
certo humor e pude, por diversas vezes, constatar que era justo nos seus
julgamentos e decisões.
Desconheço o
que se passou desde então com o Capitão Saraiva.
Na terça-feira,
dia 11 de novembro de 1986, dia de São Martinho, pela manhã, fomos informados
que, da parte da tarde, após a formatura quinzenal, teríamos a visita do Major
Capelão, que nos iria falar da história de S. Martinho e da sua importância no
panorama religioso da igreja católica. Deste modo, quando terminasse a
formatura na parada, deveríamos reunirmo-nos nas oficinas do quartel, local
escolhido para a palestra.
Claro que foi
assunto largamente comentado ao longo de toda a manhã.
Primeiro, um
Major Padre! À partida, a curiosidade era por si só, motivo de chacota e de
algumas piadas inventadas no momento.
Depois,
quanto tempo iríamos ter de estar sentados dentro daquele barracão e o que esse
tempo representava no atraso das tarefas nos nossos serviços?...
A melhor
forma de o suportar era rir.
E assim foi!
O próprio Capitão
Saraiva brincava com a situação e atirou umas piadas durante a revista na
parada, enquanto o major instalava o equipamento sonoro nas oficinas. Estávamos
todos curiosos!...
Finda a
formatura, lá fomos para a palestra.
Não havia
lugares sentados para todos. Fomo-nos arrumando, encostados às paredes e aos
portões e dividimos os bancos corridos que existiam. Aos poucos estávamos todos
instalados, no meio duma nuvem de fumo, uma vez que a maior parte de nós
fumava.
Estavam ali
à volta de duzentos homens, soldados, cabos, sargentos e o próprio Capitão
Saraiva, com o seu sorriso malicioso por debaixo da barba e os olhos semicerrados,
a perderem-se abaixo das sobrancelhas farfalhudas. Hoje, acho que os seus olhos
eram parecidos aos do Gilberto Madaíl…
Não foi
efetivamente uma tarde fácil para o major.
De tudo ele
tentou para prender a atenção dos militares, mas a ação de evangelização não
convenceu ninguém.
Começou por
desmistificar a popularidade do São Martinho, bem como os rituais gastronómicos
inerentes ao seu dia. Depois, tentou falar de todo o seu percurso na Terra, das
suas virtudes, dos seus milagres. Na verdade, todos nos questionávamos, para
quê complicar?...
A malta
queria era bazar dali para fora, mas
era chegada a hora das questões que o major queria que colocássemos, para ver
se tínhamos entendido bem a matéria.
Eis que em determinado
momento, quando a seca já era demais
e ninguém se adiantava no sentido de perguntar algo, um dos cabos mais velhos, dos
chamados Cabos Chicos, isto é, cabos
contratados, homem para os seus quarenta anos, colocou o dedo no ar, como se
estivesse na escola, provocando risada nos que o rodeavam.
O Major Capelão
delirou com a interação daquele militar mais velho.
- Finalmente
alguém! Diz, jovem!... – soltou, apontando para o fundo da sala com o braço
estendido e palma da mão a quarenta e cinco graus.
- Posso ir
fazer cocó? – perguntou o cabo
O barracão
explodiu e até o capitão Saraiva não aguentou a gargalhada espontânea.
- Espera só
um bocadinho – disse o Major Capelão – Só quero terminar com uma música para
todos cantarmos!
Enquanto
ríamos ainda todos, começou a soar a música do Padre Zezinho “Amar como Jesus
amou”, cantada pelo José Cid, enquanto o Major batia as palminhas e tentava que
nós todos entoássemos a canção. Assim fizémos para fim de festa.
Rapidamente
o Major meteu a aparelhagem na sua Peugeot 204 cinzenta, do exército e basou dali para fora.
Mantivemo-nos
nos nossos lugares à espera de ordens do Comandante da Companhia, o Capitão
Saraiva.
O Capitão Saraiva
tentava colocar uma expressão séria, mas não resistia e, de vez em quando,
deixava soltar uma ou outra lágrima provocada pelo riso, que limpava com os
dedos ou, em último recurso, com o lenço.
Quando a
platéia ficou mais calma, iniciou o discurso final…
- Meus
senhores, com todo o respeito pelo nosso Major Capelão, bem como respeitando
todo o esforço aqui desenvolvido, eu, como vosso Comandante de Companhia, vos
digo para esquecerem o que ele aqui vos contou. O São Martinho será sempre o santo das castanhas assadas e da água-pé!
Tenho dito e agora ide para os vossos serviços!
Hoje, ao ler
a legenda da fala do Liam Neeson, a do chichi, não pude deixar de me lembrar da
do cocó, soltada pelo meu camarada da tropa.
Ambas despropositadas,
uma complicou um filme que estava a correr bem e a outra descomplicou uma
situação que estava a chatear.
Já a
conclusão do Capitão Saraiva reforçou a ideia de que, quando as coisas são
fáceis e do consenso geral, para quê torná-las complicadas?...
Vou ter de
ver a parte do filme que perdi enquanto contava este episódio à minha filha.
… /…
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