Há sons inconfundíveis. São como música para os nossos ouvidos e
viajam connosco durante toda a nossa vida, nos nossos corações.
São tão reais, tão marcantes, que conseguimos imaginá-los ao final de
anos e anos, sem se haverem repetido desde então.
Mais, em momentos ou ambientes perfeitamente distintos, vêm-nos à
memória como se tivéssemos acabado de os escutar.
Aconteceu no domingo passado.
Passeava pelo Chiado com uma amiga e dei connosco no interior da loja
Nespresso, ao virar da esquina da Rua do Carmo, com a Rua Garret, mesmo em
frente à FNAC, ou melhor, defronte do velho Grandela e dos Armazéns do Chiado,
no tempo em que cheirava bem, em que cheirava a Lisboa.
A entrada estava povoada de espanhóis e após algumas cerimónias
normais de cedência de passagem, lá soltei um sorriso, dizendo:
- Obrigado – e entrámos...
Olhei à volta e não gostei do que vi.
Esta coisa de ter tempo para pensar, recordar e refletir sobre uma
quantidade de coisas que antes me passavam ao lado, tal era o carrossel
desenfreado dos dias, hábitos consumistas e modas instigadas, criam-me o receio
de estar a transformar-me, aos poucos, numa pessoa cada vez mais rezingona,
inconsistentemente crítica e desagradável, por vezes.
Afinal, estava com a minha amiga e o momento era para nos sentirmos
bem e usufruirmos do momento, num espaço requintado, ainda mais porque, no
final, oferecer-nos-iam a degustação de um novo flavour, ou simplesmente um cafezinho a gosto.
Percebi, enquanto esperávamos pelo atendimento, que só tem direito a
essa deferência quem efetuar uma compra. Fiquei, no entanto, no
desconhecimento, se tal acontece mediante um valor mínimo de aquisição, tal a
simpatia forçada e a dinâmica artificial colocadas em todo o processo, demonstradas nas palavras proferidas aquando da entrega da fatura:
- Queira acompanhar-me,
então…
Enquanto aguardávamos a nossa vez, ditada por um ecrã que debitava
números de ordem e
respetivos balcões de atendimento, onde um elemento fardado nos
esperava, olhei à minha volta.
Na entrada, ao cimo dos dois ou três degraus que mais não servem do que
para complicar a entrada e saída da loja, está um recepcionista que dá as boas
vindas e nos entrega a senha, pedindo para aguardarmos a nossa vez,
arrumando-nos à sua esquerda, se possível um pouco mais atrás, a fim de
facilitar o acesso ao balcão.
O espaço é bem decorado, podendo observar-se os ícones e registos da marca
que dão a grife ao local. Todos os
funcionários estão fardados e o repositor de stock calça luvas pretas, elásticas,
para que o contacto com as embalagens das cápsulas seja o mais asséptico
possível, valorizando assim o produto, como se de lingotes de ouro se tratasse.
Coisas de marketing!...
O painel dos 22 Grands Crus,
onde os distintos perfis aromáticos estão expostos, fica nas costas dos atendedores, que exibem as suas poses eretas e profissionais.
As desejadas cápsulas, bem arrumadas nas prateleiras, exibem-se
majestosas aos olhos do consumidor, que saliva só de olhar.
Confesso que fico perdido e até impaciente ao olhar tanta variedade,
preferindo concentrar-me apenas nas cores. Transportam-me para as minhas tintas
e imagino aguarelas, guaches, acrílicos e óleos… Por momentos parece que estou
na Casa Ferreira, ali perto, por sinal.
Tantos aromas e suas características confundem-me, chegando mesmo a
perder a sincera vontade de beber café e ansiar desesperadamente pelo momento
de zarpar dali para fora, poder entrar na Brasileira e pedir, de forma simples:
- Dois cafés, por
favor!... – assim, sem me preocupar com a intensidade, se é Expresso, Lungo ou Pure Origine… um
café ou bica, como quiserem, como eu gosto e pronto!
Já para não falar do ruído em redor.
O típico ruído de pastelaria ou café, locais populares de culto, onde
se bebe a bica sem canela, leite, baunilha ou colher de doce de frutos
vermelhos no seu interior. Onde o som rápido e nervoso da colher, de encontro à
chávena de loiça, nos embala até ao doce morrer da mesma, deitando-se sobre o
pires.
E por falar em sons e café… que bom é lembrar a colher de sopa, que de forma lenta e
cadenciada, raspava no fundo da cafeteira de alumínio e batia nas suas paredes,
manuseada pelas mãos doces da minha mãe e da minha avó, ao fim da
tarde, na cozinha, provocando um som rouco, abafado pelo café em pó que se colocava na boca da
cafeteira e teimava em demorar a dissolver-se na água que fervia. Este café tinha um flavour que nem os 22 Grands Crus, nem qualquer outro que esteja ainda por inventar, conseguirão
apurar.
O flavour do amor e da harmonia que envolvia uma simples reunião à
volta da mesa, onde o som das conversas e das gargalhadas envolvidas pelo aroma
a café me permitem, até hoje, reter o timbre das vozes…
Este café é que era bom. O seu flavour
e som, únicos…
Tão cedo não volto àquela loja. Não me inspirou…
E agora, vou beber uma bica.
Um comentário:
Vê por este prisma: essas modernices (amaricadas) serviram para aguçar-te memórias queridas. Valeu a pena o "sofrimento".
Já agora: devolve-me a cafeteira, se faz favor.
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