terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Era uma vez...

Por essa altura já teria bocejado uma meia dúzia de vezes, mas esfregaria os olhos na tentativa de aguentar mais um bocado, adiando a hora de dormir.
Na cozinha, eu, minha mãe e a madrinha Gabriela, de porta encostada para não acordar o meu pai e o meu irmão, que estariam a dormir há um bocado, entrávamos pela noite fora, entre gargalhadas entrecortadas por uma tosse alérgica, de uma ou de outra, resultante do avançado da noite, passada a rir, das piadas e histórias inesperadas de cada uma delas:
- Ó menina, tu havias de ter presenciado… - dizia a minha mãe, enquanto a madrinha Gabriela, ria e afagava a manta sobre os ombros e se engasgava com a própria saliva, de tanto rir…
No fogão, o arroz doce gorgolhava no tacho, sob o movimento circular que a minha mãe lhe imprimia, no sentido dos ponteiros do relógio:
- Tem de ser assim, filho… - dizia-me – é para não deslaçar e os ovos ficarem ligados com o arroz!...
Pelas 03h00 da manhã bebiam chá e eu, completamente drogado pela magia das mãos, ora da minha mãe, ora da madrinha Gabriela, que me coçavam a cabeça, embalava o meu sono inquieto, despertado amiúde pela alegria só justificável pelo facto de estarem juntas a cada Natal.
Era assim todos os anos! No dia seguinte, a casa estaria mais cheia. Os meus tios chegariam pelas 19h00, a tempo de colocarem os presentes na árvore, antes de jantarmos.
O jantar era alegre e eu e o meu irmão deliciávamo-nos com as conversas e o calor que assistia à nossa consoada.
Deliciávamo-nos com o facto de estarmos todos juntos, à mesa, pela noite fora.
Os nossos pais, sem terem consultado qualquer manual, passavam-nos a cada ano a verdadeira essência do Natal, numa época em que o amor era gratuito e as cartas ao Pai Natal passavam para segundo plano.
Um dos nossos maiores desejos era que, passado o dia de Natal, os nossos tios ficassem connosco, em nossa casa, um dia mais que fosse…. Apenas para podermos acordar e tomarmos o pequeno-almoço todos juntos… e eles ficavam!...
Era uma vez um feliz Natal!...

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domingo, 21 de dezembro de 2014

Éden

Certos dias pela manhã
Ouço melodias na chuva quando cai
Feliz, acordo com esta vontade, nem sei
Vadia de me entusiasmar
E logo o meu pensamento parte, vai…

Vagueia pelo Tejo e alcança a cidade
Nela, à espera num cais, existe alguém
Alguém que entusiasmado também
Sonha comigo poder sonhar
Um sonho que nos faz tanto bem.

Quando acordo de manhã cedo
E lá fora tudo está tão molhado
Na minha cama, muito aconchegado
Não sei se acordado ou ainda a sonhar
Falo e rio e rio e falo, de tão entusiasmado…

E há sempre alguém que num embalo
Feito navio do cais zarpado
Me leva ao Éden, do outro lado
Leva-me lá e faz-me vir... ao chegar,
Já refeito, sou marinheiro regressado

E todos os dias de manhã
Logo que a chuva se faz notar
É esse alguém que me faz pensar
O quão é muito, mas  muito melhor,
Hoje em dia, o meu despertar…

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sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Caminhada

Cresceste tão depressa
Que nem dei conta de alguns dos teus passos
Sei que os deste, que fizeste o teu percurso
Deste tantos, uns a seguir aos outros
E com tantos deles que deste
Foi tanto o que aprendeste
Agora, peço-te…

Ensina-me a caminhar a teu lado
Faz com que não me sinta nunca mais perdido
Anda, diz-me, como posso eu acompanhar-te?
Quero aprender contigo…
Lembras-te de quando eras pequenina?
Fazia-te rir à noite, na tenda
E o dia amanhecia lindo
Tu saltavas e corrias
Respiravas alegria
E assim, não dávamos pelo passar dos dias…

Cresceste tão depressa
E cedo te tornaste mulher
Como pude eu perder tantos passos teus?
Pergunto-me, às vezes…
Mas, ah, quão iludido estou!
Ao pensar que os teus passos eu perdi…
Hoje, confuso, já sei
Talvez tenha perdido, sim, mas os meus
Ensina-me, pois, a caminhar
A teu lado, e a jamais de nós me afastar…

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quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Piratas fantasmas

Sou mesa de quatro pés
Revirada dentro da minha casa
Quando a noite cai
Desato num galope, em desatino
Ganho vida e não durmo…
Esta mesa onde eu como,
Onde escrevo e sinto que os dias passam,
Entre um pequeno-almoço e uma ceia que sabe a sono,
Onde, cansado, poiso os braços, encosto a cabeça
E costumava dormir tranquilo…
Hoje a minha casa foi povoada
Por fantasmas sem rosto, com mãos de látex
Olho para o teto e vejo o chão,
Virado que estou do avesso,
Eu feito mesa,
De pés colados ao teto…
A minha casa é um tanque de emoções esquisitas
Onde os objetos perderam o pé
Parecendo boiar juntamente com as imagens
De recordações tranquilas e doces…
Pouco a pouco, a água subitamente revolta,
Feita tempestade, intempérie que me confunde,
Indica que o meu refúgio é a minha casa
E que logo, logo, a bonança vai voltar…
Mesa, cama, roupa, loiças e teto
São os faróis referência
Que me guiam e ajudam a prosseguir a rota
Cujo destino é a minha casa,
Relicário inexpugnável,
Hoje, porto inseguro
Tomado por piratas fantasmas que desconheço…

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domingo, 7 de dezembro de 2014

Etéreo

Faz hoje oito anos…
Dois mil novecentos e vinte dias
Que partiste
E eu adoro-te
Minha Mãe…

Talvez no lugar onde te encontras
Não haja, nem tempo, nem distância
Talvez o nosso afastamento
Não tenha a mínima importância…

Talvez, assim sendo
O que parece ser o infinito
O etéreo, o longínquo…
Nosso encontro, esse momento…

Doce e desejado
Esteja desde sempre marcado
Sem tempo e sem espera
Distante, breve, quem nos dera…

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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Mistérios em Portalegre

Que bom que é poder viver
E ter histórias p’ra contar
Coisas novas p’ra saber
Bons amigos p’ra abraçar!

O dia ontem teve de tudo
Riso, angústia e também ansiedade
Daquilo que faz girar o mundo
Teve mesa e bebeu-se bom vinho
Muita saudade e muito carinho
Passeio à chuva, tanta beleza
Entre afectos e amor de verdade
Um plátano, meu Deus, que grandeza
Vários brindes, ondas à amizade!


Esta coisa da idade
Vai dando cabo do corpo
Só por causa da amizade
Não fui dado como morto (!?...)

Começaram o dia bem cedo
Foram muitas as dores que tiveram
Sem protesto e em completo segredo
Com passada tão frágil e manca
Fazendo pressão forte na anca
Já de noite, na volta, empenados
Uma tal milagrosa paragem
A fim de dois trocarem os lados
Ditou o enigma desta viagem!


Desde sempre ouvi dizer
Que o cão é o melhor amigo
Do homem, que quando em perigo
Logo diz: Vai tu, mulher (!?...)

Entre tintos, patês e amigos
Lá passaram radiantes o dia
Riscos inúmeros, tantos os perigos
Não tivesse passado um tal ciclista
Facilitando a fuga ao artista
Certamente que ainda estariam
À espera, ali no carro, trancados
Com medo de três cães que viriam
A revelar-se serem mimados!


Como é bela a amizade
Desta gente ai, ai, ai!...
Há lá maior verdade
Que a alegria daquele pai (!?...)

E entre buzinas, cães e assobios
Conseguiram o menino acordar
Entretanto chegaram os tios
Com ar grave e de cara fechada
Queixando-se da viagem marada
Marcada pelo enjoo do petiz
Que decidiu deitar carga ao mar
Mas que de imediato, logo lhes diz
- Ei “bué da fome”, quero almoçar!


Sinto-me embaciado
Não imagino porquê
Mesmo trocando de lado
Do meu lado não se vê (!?...)

Importa aqui também relatar
O porquê da razão deste enredo
A Marília estava a festejar
O seu aniversário e feliz
Em Portalegre a todos nos quis
Dia de romaria, pois foi
Partida do Montijo, bem cedo
Só que o adotado não viu um boi
Seu vidro embaciado, que medo!


Diz que mais vale um na mão

Do que ter dois a voar
Bolo de anos é que não
Melhor ter dois p'ra provar

Estava já toda a gente sentada

À espera dos seus pratos escolhidos
Quando a onda gigante, malvada
Começou de maneira dolente
Envolvendo depois toda a gente
Mas guardado p'ró fim estava o bolo
Quantidade a dobrar, ah pois, pois!
E eu que desta vez não fui tolo
Atirei-me a ambos os dois!


E por vezes a distância
Acentua o esquecimento
Relativo como o tempo
Alguém esquece a sua infância (!?...)

Depois da comezaina estiveram
Em casa da Marília e do Zé
Onde outra vez bom vinho beberam
Indo todos ao sótão parar
Gente houve a querer por lá pernoitar
Só o adotado disse que não
Puxando toda a malta p’ra rua
Abandonando assim o sótão
Era já noite, a ver-se p’la lua!


Amizades de criança
Santo e senha, pois então
Quanto mais o tempo avança
Bem mais importantes são!

Anafados, no carro, na volta
Pudera, atafulhados em roupa
Lembrou-se o adotado que solta
Aquilo que ninguém já esperava
Timidamente lá os convidava
A fim de prolongarem o dia
Mesmo que a fome fosse tão pouca
Após servida tanta iguaria
A comerem em sua casa uma sopa!


O mistério a desvendar
Ensombrou todo este dia
O vidro a se embaciar
Só de um lado acontecia (!?...)

E se não fora a escola segunda
Talvez tivessem todos ficado
Porque a vontade era profunda
De desvendar o enigma fatal
Assim, talvez p’ra lá do Natal
Possa saber-se o tal resultado
Que passa por se ter a razão
Pela qual só embacia o lado
Em que viaja o adotado João!?...


E não é que o embaciado
Em enigma se tornou
Atacando só o lado
Em que o adotado viajou (!?...)

Já de volta a caminho
Lá atrás tudo a falar
Eis senão, num bocadinho
Torna o vidro a embaciar (!?...)

Fica assim pois já lançado
Novo encontro p’ra saber
O porquê de só se ter
Um vidrinho embaciado (!?...)

Há p’ra mim uma razão
Chamo-lhe eu de amizade
Não é mais do qu’ a humidade
Suor do meu coração !


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