Gosto de pés!
Dito isto, é bom que me explique.
Desde bem pequeno que assim é e, ao longo dos anos, refinei este meu
gosto.
Para isso, contribuiu o Carlos, meu professor de desenho, corria o ano
1979.
A malta estava abismada com o seu discurso. Nunca ninguém tinha
abordado tal tema, assim, em público, mais a mais tratando-se de uma aula de
desenho (!?...)
O Carlos, mais do que um simples professor de desenho, era nosso amigo
e preocupava-se com a abertura das nossas mentes, confrontando-nos constantemente
com a importância do belo, do absurdo, das ideias pré-concebidas e o desafio que era olharmos o mundo com olhos diferentes e imaginativos.
Falava ele, nesse dia, da importância que tem a beleza de um pé na harmonia e
equilíbrio estético do corpo.
Aquilo tocou-me! Aquela conversa era tudo aquilo que eu pensava mas que
nunca tinha tido a coragem de revelar!...
Praticamente, toda a turma riu.
Alguns colegas, riram demonstrando algum nervoso miudinho, incomodados
com o assunto e certamente, alguns deles, encolhendo os pés…
- Devem ter os pés feios… - pensei.
Mais tarde, confirmei alguns casos.
- Ai, os meus são esbeltos – disse o Picaluga, o mais velho da turma,
calçando talvez, já naquela altura, o 42, provocando uma gargalhada na Xani.
As outras raparigas, essas, ficaram caladas, incomodadas com o tema da conversa, quase que reveladora, ou, pelo menos, criando curiosidade relativamente à intimidade de cada uma.
Desde então, passei a não ter qualquer escrúpulo em revelar esse meu
gosto e, inclusivamente, passei a olhar para os pés com mais respeito e
exigência, convencido de que faço parte de um grupo reduzido de pessoas
abençoadas pelo facto de terem a sensibilidade de apreciar a beleza no seu
todo. E se o conjunto pode ser revelador de uma beleza homogénea, o pormenor pode
fazer toda a diferença…
Penso que é injusto menosprezar-se a beleza dos pés, não lhes
concedendo o mesmo protagonismo das mãos, olhos, cabelo ou boca, todos eles
responsáveis pela harmonia e elegância do corpo, para além de que também os pés
podem desvendar muito da personalidade de quem os transporta, ou de quem por eles é
transportado.
Descartá-los, minimizá-los, desprezá-los e, sobretudo, ignorá-los,
revela insensibilidade, superficialidade, por vezes, insegurança e até medo…
Gosto do verão, gosto de sandálias, gosto de pés bronzeados, tratados,
elegantes e, às vezes, atrevidos, nús…
Gosto de ver pisar como quem beija ou acaricia o chão e gosto dos
movimentos que um pé pode desenhar ao alongar-se, dedos tensos, solas
contraídas, calcanhares no ar, bicos de pés.
No entanto, pés feios merecem também a minha admiração. Tome-se como exemplo os pés das bailarinas e bailarinos, dos desportistas, os pés de quem trabalha descalço e os usa como ferramenta. Pés macerados, castigados, mas sobretudo, honestos, verdadeiros, de quem não teve tempo para cuidar devidamente deles...
Além de tudo, os pés estabelecem o contacto com o chão.
Eles são testemunhas do
peso que exercemos sobre este planeta e prova sofrida da nossa existência neste
deambular constante. Através deles recebemos e utilizamos a energia emanada
pela terra mãe.
Os pés descodificam essa energia e não mentem… Os olhos e a boca podem
fazê-lo!
Assim, bem que o ditado podia ser:
- Mostra-me os teus pés e dir-te-ei quem és…
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