Nem sei como hei-de começar…
Mas sei que há coisas muito feias que fazemos em vida e que são verdadeiros maus
exemplos para todos.
Coisas que nos envergonham e das quais nos arrependemos.
Ainda bem que
podemos experimentar esse sentimento, o do arrependimento. Não resolve nada,
mas deixa-nos em paz connosco, aparentemente.
Mas, às vezes, fazêmo-las, sem que para isso tenhamos contribuído
voluntariamente, apenas não conseguimos recusá-las, não há como resistir-lhes,
tal a doçura do momento e a noção séria que temos de estar a contribuir para
a felicidade de outros.
Foi o que se passou comigo, há uns anos atrás, em Cuba.
A coisa feia? Chama-se usurpação de identidade!... Mas que valeu a
pena, ai isso valeu…
Todos sabemos que o futebol é um fenómeno social à escala planetária e
até mesmo um país com características tão próprias como o é Cuba, disso, não
foge à regra.
Os seus meninos jogam-no na rua, muitos deles equipados a rigor, fruto da
oferta dos turistas que por ali passam. Muitos destes, guardam o endereço de uma
qualquer família de Havana, Santa Clara ou Varadero, registado no final de mais
um jantar caseiro, ao qual chamam “paladar”. Fica assim prometido, em troca da
simpatia com que foram recebidos, o envio de uma camisola com o nome do craque favorito estampado nas costas.
Naquele ano ido, um dos futebolistas mais mediáticos de então era, nem
mais nem menos, o nosso Figo, orgulho nacional, numa época em que Cristiano
Ronaldo ainda dava os seus primeiros passos no Sporting Clube de Portugal.
E era para nós, portugueses, uma honra, por todo o lado que
passávamos, de Portugal à China, da Austrália à Rússia, da Índia às Caraíbas, podermos
ouvir falar de Figo ou de Rui Costa e vermos as suas camisolas, do Real Madrid
e do AC Milan, com os seus nomes tatuados, bem visíveis, nas costas de petizes
e graúdos.
Em Cuba, por exemplo, o fenómeno Figo era mais popular, fruto da
influência hispânica, certamente.
Ora então, quis a ironia que, à época, eu usasse um corte de cabelo
idêntico ao que o Figo usava. Não que tivéssemos copiado um pelo outro, lógico,
mas não deixava de ser engraçado ir na rua e ouvir variados comentários sobre a
semelhança das melenas.
O insólito estava, no entanto, para acontecer.
Adepto madridista confesso, sendo tal paixão anterior à ida do Figo
para Madrid, colecionei sempre artigos referentes ao grandioso Real Madrid.
No meu guarda-roupa de viagens ou férias, transportei sempre algumas
camisolas de clubes dos quais gosto, para além das do clube do meu coração, o
Glorioso Benfica! Assim sendo, não fugi à regra e, para Cuba, levei duas
camisolas, a do Benfica e a do Real Madrid.
Naquela tarde, estava programado irmos até ao centro da cidade visitar
a Catedral de San Cristobal e o Mercado de San José, conhecido pelas suas
coloridas telas e artesanato variado.
Era o penúltimo dia da estadia e toda a gente pretendia adquirir
bonitas telas e outros objetos, por entre centenas de trabalhos coloridos, bastante reveladores da cultura cubana.
À porta do hotel, o autocarro esperava os elementos do grupo a fim de partir em direção ao destino, aproveitando estes o traçado do percurso para se
deleitarem com o trajeto ao longo do Malecón, idílico passeio marítimo, ao
longo de Havana, virado para o Golfo do México.
Recordarei para sempre as imagens das gentes habaneras, umas sentadas, outras
encostadas ao murete de pedra, olhando o horizonte, envoltas num sonho verdadeiramente
sonhado, só comparável ao sonho dos amantes apaixonados, beijando-se à luz do sol de final
de tarde, já condenado ao ocaso, complacente com o seu destino.
Quando me aproximei do autocarro, trazendo no corpo a camiseta do Real
Madrid, que vestira pela manhã, falaram-me do reboliço que tinha acontecido há
pouco, imediatamente controlado pelos seguranças do hotel.
Um grupo de garotos tinha estado junto do autocarro, à espera de ver o
Figo e assim conseguir um autógrafo do craque! Tinham-lhes dito que ele estava
ali hospedado.
Não queria acreditar no que me contavam!? Como era possível!?
Brincavam comigo, com certeza.
Nunca tal me tinha acontecido!... Comentarem-me que sim, que fazia
lembrar o Figo, ainda mais vestido assim, com a camiseta do Real Madrid, vá que
não vá, agora, daí até se aglomerarem à porta do hotel, convencidos de que era
ele em carne e osso, que se preparava para entrar no autocarro, era quase
surrealista!?
Imaginar a situação, fez-me pensar naqueles miúdos, ávidos por viverem
uma emoção tão forte, perpetuando-se nas suas vidas… O Figo, ali, ao pé deles!
A oportunidade de guardarem para sempre um autógrafo seu como garantia de um
dia terem estado tão perto do mundo real que existe para além do Oceano
Atlântico e do Mar das Caraíbas.
E que situação, ao fim e ao cabo, tão simples e fácil de acreditar. Afinal, tratava-se de um grupo de portugueses em Cuba, logo, lógico, Portugal é tão
pequenino que, nada mais natural que Figo pudesse fazer parte desse pequeno
grupo de cinquenta pessoas!?
Entrei no autocarro e fiz o passeio ao longo do Malecón com um sorriso
nos lábios, como que beijado por uma aragem na alma, compatível com a brisa marítima que
se fazia sentir no exterior do autocarro.
Decididamente Cuba é para mim a terra dos sonhos e, hoje em dia,
sempre que recordo tal episódio, sinto que fiz parte de um capítulo
inesquecível e quiçá deveras importante na vida daquele grupo de rapazes…
Por mim, jamais esquecerei que, como por magia, fui o Figo para aquela
gente!...
As notícias passam de boca em boca e bem depressa.
Vim a saber, mais tarde, que, pela manhã, tinha sido visto no hotel,
provavelmente por um trabalhador do mesmo, com a camisola do Real Madrid.
Crédulo ou não, simplesmente por brincadeira, quem sabe, o boato espalhou-se e daí ao ajuntamento
à porta, por parte dos miúdos, foi um instante…
Aquele Malecón é o paradigma dos sonhos.
Quantos sonhos ali morrem, afogados na imensidão do mar que beija a
velha Havana! Quantos deles ali ganham asas, voando para além do que os olhos
avistam? Quantos deles acompanharam aquele autocarro, que viajava entre o hotel
e a Praça da Catedral, provocados por um tal passageiro chamado João Rafael em
forma de Figo!?
O insólito, no entanto, ainda estava para acontecer…
Chegado ao destino, o autocarro, por entre manobras, estacionou junto
ao passeio e, no seu interior, todos nos levantámos, preparando-nos para sairmos,
entre encontrões e tentativas de pegar os casacos e as câmaras fotográficas,
depositadas nas prateleiras, por sobre os bancos.
Já compostos e na posse perfeita de tais objetos, foi-se formando a
habitual fila indiana, num só sentido, enquanto o condutor não tomou a decisão
de abrir a porta traseira, facilitando a saída de todos mas gerando, uma vez
mais a confusão, com a mudança de direção por parte de alguns. Aí, uns foram
para trás, outros insistiram na saída pela porta da frente. Foi o meu caso.
E eis que aconteceu o imprevisto!...
O meu amigo José Moreira, que já tinha saído, voltou atrás, subiu os
dois degraus do autocarro, olhou-me nos olhos, com um sorriso do tamanho do
Malecón e disse, em jeito de resposta a alguém no exterior do autocarro:
- O Figo está ali!...
Todo o grupo se apecebeu, de imediato, do que se passava… O passeio
estava repleto de miúdos a perguntarem pelo Figo, com papéis e canetas nas
mãos.
É que, no hotel, como medida para os demoverem, tinham-lhes dito que o autocarro ia para
o Mercado de San Jose.
É verdade!... Para aqueles miúdos, o sonho não tinha terminado no
momento em que os seguranças do hotel os tinham obrigado a debandarem.
Uma vez mais, eles foram a correr atrás do sonho. Cruzaram a cidade de
uma ponta à outra, possivelmente ao longo do Malecón, para conseguirem um
autógrafo de um falso Figo, que para eles era tão verdadeiro, o original!...
Depois disto, o José Moreira falou-me:
- Joãozinho, estás tramado, vais ter de dar autógrafos!...
Naquele momento percebi que o sonho, ainda que sonho, por vezes, move muito mais do que a realidade dura e cruel que o tempo marca. Percebi que, naquele momento, ainda que pudesse, pela proximidade física, criar alguma desconfiança
nas suas cabeças, era, na mesma, importante para eles o meu teatro e mesmo que me colocassem uma
qualquer bola nos pés, a fim de comprovarem a minha habilidade, ou a fim de me descobrirem a careca, estou certo que, nesse momento, seria iluminado pelo anjo dos sonhos e arrancaria uma jogada
elegante, digna do verdadeiro Figo!
Aquele momento foi sublime e ternurento...
E ali fiquei, algum tempo, a distribuir autógrafos, apertos de mão e
muitos sorrisos, com a miudagem à minha volta.
A minha única preocupação era não decepcionar aqueles miúdos.
E lá foram eles, felizes sem saberem que guardavam um
autógrafo sentido e verdadeiro de um falso Figo.
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