sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Chuva vertical

Chove no parque…
Sobre a relva, à chuva, nove pássaros
Chove…
Chove na vertical…
A esplanada está vazia
São nove, as mesas amarelas vazias
Fugiram todos para dentro
Posso aperceber-me disso, através dos vidros escuros
Ouvem-se ruídos vindos de lá
Ruídos de vozes misturados com barulhos de louça…
Ao fundo, muito ao longe, parece ser o ruído de uma televisão
Cá fora é bem melhor
Está frio, é certo…
E chove…
Chove na vertical, mas não me importo…
Puxo o fecho éclair do blusão sobre a camisola de lã
E aconchego a gola, tapando a boca
Das mãos, só vejo os dedos que seguram a caneta
Pois as mangas, puxei-as para que as mãos não arrefeçam
Está frio…
Sinto-me bem com os meus óculos novos
Consigo até ler a marca da caneta que seguro entre os dedos
Antes, já mal conseguia ver os dedos
Muito menos o que escrevia…
É uma “ Uni-ball eye”
Até as letras mais pequenas são agora visíveis
Waterproof / Fade-proof
É tudo o que eu preciso…
Um “eye”, que é como quem diz, um olho, para olhar o que me rodeia
E uma caneta à prova de água, para poder descrever como vejo e sinto as coisas
À chuva, sem o medo de que a chuva ou o tempo as façam debotar
Ou, ingloriamente, desvanecer…
Aqui estou, protegido por este alpendre
Mais ou menos um metro e trinta de proteção
Não há vento e a chuva cai na vertical…
Entretanto, as aves multiplicaram-se
São agora à volta de dezassete,
Entre gaivotas, pombos e outros pássaros mais pequenos
(Lembro-me da anedota; pássaros, passarinhos, passarões, aves de gaiola e cucos)
Petiscam nos charcos salpicados pela chuva que cai na vertical
E ignoram-na…
Também eu… 
As árvores majestosas, hoje, não fazem sombra
O parque está vazio e consigo ouvir o som da chuva a cair
Não só aqui, mas lá ao fundo, depois da relva, sobre a pedra do chão
Ou sobre a lona dos chapéus da outra esplanada
Dou comigo a marcar os compassos dos pingos que caem do alpendre
Sobre o tampo das mesas amarelas
Elas próprias com gotas estampadas que eternizam as realmente tombadas
O espectro amarelo provocado pelas mesas amarelas
Olhado através das lentes progressivas dos meus óculos
Confere uma tonalidade mais luminosa à relva
Castrada que foi a luz do sol, pelas nuvens cinzentas
Logo hoje, que faz frio…
Logo hoje que chove na vertical…
Ouve-se o som dos motores de um avião que, ao levantar, ecoa por todo o parque
Numa toada que me entra pelo ouvido direito e sai pelo esquerdo,
Como se alguém movesse o botão “balance” da direita para a esquerda,
Projetando-se a oeste
Vai com certeza cruzar o Atlântico…
À volta das minhas botas encharcadas
Passeia um pombo com as asas fechadas.
Ainda não o vi voar…
Um parque inteiro à minha frente, vazio,
Condiz com a esplanada onde me sento
Um pombo com asas para voar e que não quer
Condiz com o meu sentir e com o meu olhar
O espaço vazio à minha frente,
A vontade de estar sozinho, ao frio, sem medo da chuva
Que cai na vertical
A vontade de voar, mas…
O tempo que passa e estas asas que se mantêm fechadas…

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