quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Poema banal

Se amanhã de manhã ninguém se lembrar de mim
E eu não acordar cedo
Nada vai acontecer enquanto eu não acordar
Se amanhã eu acordar tarde, mais tarde será o amanhecer
E porque dormirei até mais tarde
Menos coisas acontecerão no meu mundo, durante o dia de amanhã…

Que o meu mundo só existe quando eu estou acordado…

Se ninguém me telefonar, nem a campainha tocar, amanhã de manhã
Vou poder estender os meus sonhos por mais tempo
A manhã será o prolongamento da noite
A tarde será o amanhecer…
E a noite o entardecer…
E quando o sol se puser, ainda será cedo para mim
Eu que gosto pouco de dormir e que quando estou acordado
Penso em tantas banalidades…

Aliás, só penso em banalidades…

Os dias repetem-se sem eu me dar conta e estão tão cheios dessas banalidades
Curiosamente, se olhar para trás, ao mesmo tempo, sinto-os tão cheios de vida…
e tão bem preenchidos, também…
Que só por isso me faz ter repetidas vezes um pensamento tão banal…
Como podem eles ser tão cheios de vida e tão bem preenchidos se eu só penso em banalidades!?
Talvez por isso mesmo, porque só penso em banalidades
Talvez porque a vida não tenha que ser senão banal!
Ou porque talvez já haja tanta gente a pensar em tantas coisas que não são banais
E que por isso, não seja preciso mais uma a pensar nisso também…
Mas... será que os dias não se repetem para essas pessoas também?
Essas que pensam em coisas que não são banais ou que julgam elas que o não são?

Também eu já pensei como elas, não vai muito tempo
O dia amanhecia, mal tinha acabado de anoitecer há pouco, a noite de véspera
E eu, na maior parte das vezes, nem sequer tivera tempo para sonhar
Nesse tempo, na minha cama, era eu e todas as coisas não banais que adormeciam comigo
Quando acordava, antes do novo dia amanhecer, já estavam a acontecer coisas
Quantas vezes faltou a luz, coisa que agora nem dou conta?
E o padeiro que passava na rua, mais o almeida que eu cumprimentava
e que hoje desconheço?
E o sol que nascia sempre daquele lado e que agora não sei…
Quando acordo, nem sequer sei para que lado estou virado, uma vez que já nem despertador tenho e por isso não tenho que levantar o braço na sua direção…
Que era a mesma todos os dias…
E a vizinha que vinha à porta com o seu robe vermelho!?
Agora já nem a cor do robe sei… nem sequer me lembro da cara dela…
Agora já nem sequer sei se tenho ou não vizinhos, porque quando acordo
(Isto se ninguém me telefonar ou tocar à campainha obrigando-me a fazê-lo mais cedo)
Já todos partiram para as suas vidas
E eu, que já nem a cor do robe conheço, nem que cara tem a vizinha, se é nova ou velha, se vem à porta ou não, tenho agora uma vida banal sem essas tantas preocupações tão importantes de então…
Essas preocupações que eram tão importantes quando eu tinha uma vida não banal e que hoje já não o são

Amanhã, quando eu acordar e o amanhecer for já ao início da tarde,
Algumas coisas acontecerão no meu mundo
Vou comprar o pão que já deve ter esgotado, ler o jornal do café que já foi lido por meia aldeia, encher os pneus da bicicleta…
Vou comprar tintas e depois vou pintar uma tela no meu terraço…
Aahhh!... Vai ser assim!... Nada de mais, apenas banalidades…

E à noite, que ainda será de tarde para mim
Vai falar-se de coisas importantes nas casas dos vizinhos
O que é que almoçaste? Como foi o teu dia? O que disseram lá no emprego?
Mais as férias que terminaram há três dias e que já  tanta falta fazem outra vez…
E todas as questões vão ter respostas importantes que contribuirão para o progresso do mundo que não é o meu
E o mundo vai girar à mesma velocidade e o sol iluminar o outro lado do planeta
Os vizinhos vão-se deitar a pensar que são felizes… e o mundo vai continuar a gerar pessoas e vidas que não são banais
E cada vez mais o meu mundo não vai ser este mundo…

Ainda amanhã à noite, que  continuará a ser de tarde para mim,
a vizinha do robe vermelho de então irá de robe para o quarto
e quando se abeirar da cama
o marido com vontades loucas (não banais) vai exigir-lhe que ela o tire…
E a cor do robe não vai interessar para nada porque vai faltar a luz
e o que importa é despachar o assunto porque amanhã vai ser um dia importante para cada um dos dois
Ela vai fazê-lo contrariada… nada de mais
Assim é…  
Amanhã à noite vão enganar-se os dois um ao outro… nada de mais… é banal!
Vão dizer coisas importantes um ao outro e de manhã quando ainda for noite para mim 
tantas coisas terão acontecido nos seus mundos que não o meu
Que o meu mundo só existe quando eu estou acordado…
E ainda bem que eu vou estar a dormir…
E a sonhar…
Com coisas tão banais…

... /...

Um comentário:

a_ciganita disse...

As banalidades, por serem cegas, minam-nos a vida, tornando-a insonsa. Fazem de nós seres vulgares e (supostamente vazios). Espezinham, sem dó, a diferença que sentimos na alma, sempre que nos permitimos ser diferentes. Põe-nos sobre os ombros a peso da cobardia na falta de sorrisos inovadores. E, no entanto, são também elas que nos incendeiam o olhar, nos dão a consciência da igualdade, nos elevam a patamares inimagináveis ao, por serem cegas (repito), não perceberem que espreitamos por entre frestas e criamos o brilho em todos os sentimentos que (banais) carregamos em nós. Beijinhos