quinta-feira, 31 de julho de 2014

Sem significado

Em cada uma das lágrimas
Correndo no leito cavado do meu rosto
Viajam todas as palavras que eu não proferi
Enquanto correm, misturam-se e diluem-se
Compondo uma espécie de dicionário desconhecido
Descodificador da linguagem do amor, dedicada a ti

Não sei se alguém, alguma vez, o consultará
Se o fizer ao menos fique esclarecido
Nele encontrará o verdadeiro sentido deste poema
Palavras, gemidos e sons que doem
Sinais de tempos que nos fizeram felizes
Às vezes gerando confusão, sofrimento e dilema

Por isso, chorar não vale a pena
Talvez se não tenha ainda consumado o epílogo
Em vez da pena, perdão ou veredito
Um calmo sorriso, no meu rosto é dicionário perfeito
Nele, nada tem significado, nem sequer o silêncio
Esse não necessita de descodificador… schiu, está tudo dito...

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terça-feira, 29 de julho de 2014

Império dos sentidos

Trago o teu cheiro na ponta dos dedos
Pousados que estiveram no teu colo
Guardo neles o cio bem como os medos
Dessa teia de amor onde me enrolo

Levo os dedos à boca e sinto o fel
Tempero deste amor que nos consome
Paladar agridoce a queijo e mel
Gostoso mas que não nos mata a fome

Teu corpo feito meu laboratório
Embebeda-me a alma feito vinho
Tua pele, minha mesa, meu refeitório

Poção mágica, meu maior mistério
Local onde perdido eu cozinho
Fazendo dos sentidos meu império

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segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sozinho e bem quente

Hoje estou aqui sozinho
É que hoje apeteceu-me estar aqui sozinho
Às vezes não, não me apetece estar aqui sozinho
Mas que remédio, às vezes estou.
E às vezes não gosto…
Mas estou!
Mas, hoje é diferente.
A música toca muito alto
Convidei Saint Saens para jantar
Os meus vizinhos não se vão chatear porque não estão cá
Por isso estou ainda mais sozinho
E está a ser bom
Saint Saens é divinal!
Acabei de provocar um estrondo com o jornal
Matei aquela mosca que me andava a atazanar desde que cheguei a casa
Mas olha, continua a dar à asa!...
Agora sim, estou sozinho
Saint Saens já se calou
A mosca tanto andou, tanto andou,  que se finou
E eu… aqui estou
Sozinho…
Até há bem pouco, apetecia-me estar assim… sozinho
Agora já não
Agora é diferente
Apetece-me ver gente
Vou sair e beber um café
Vou sozinho porque me apetece bebê-lo sozinho…
Cheio, com açucar…
Um café bem quente

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Enviesado

És o sono enviesado que atravessa a minha cama
Que se deita comigo à noite
Adormece e ali fica até de manhã
És o sonho abençoado que molha o meu pijama
Despido e abandonado, estendido sobre o divã

És a noite e a madrugada
Minha alma abandonada
O malmequer que bem me fez
És meu feliz despertar, grito alegre de alvorada
Que me acorda p'ra vida, p'la manhã, de quando em vez

És meu tudo e és meu nada
De nada em ti me posso valer
Mais valeria sequer não te saber
Que o meu sono perpetuaria a noitada
Onde pela manhã seria a morte o meu renascer

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domingo, 20 de julho de 2014

Alma e pensamento

Minha alma será tudo aquilo que quiseres
Moldável como toda a coisa que se molda
Sendo ela assim tão-somente feita de ferro
Se partir, não tem mal, pelo que não desesperes
Uma vez que o ferro é compatível com a solda

Já o meu pensamento é uma situação diferente
Volátil, ganha tantas formas, tão diversas
Que, não sendo ferro, há-de nunca se quebrar
Porfia, regenera-se e prossegue em frente
Refaz-se, inventa novos moldes, novas peças

E então juntos, jamais irão se preocupar
Com o tempo que não mais deixá-los-á perder
A lógica do amor, fazendo-os dissuadir
Da perda que é o tempo com tanto p’ra dar
Nas mais diversas formas antes de morrer

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terça-feira, 1 de julho de 2014

O pássaro

Incomunicável, é como eu estou
O mundo não sabe de mim        
O mundo não quer saber de mim
E eu…
Eu que nele habito há tanto tempo
Tenho andado distante
Com vontade de desistir
Ao ponto de por vezes já não o reconhecer
E de não me reconhecer a mim, também
Eu que ando distraído…

Aqui estático, observo o final de tarde
Um carro que chega, outro que sai
Um pássaro que voa
Uma folha de árvore que cai…
Os meus olhos registam imagens
Distorcidas pela graduação das lentes dos meus óculos
Pousados tortos sobre o meu nariz
O meu cérebro recebe assim duas imagens distintas
Ousando descodificar qual delas a mais subjetivamente real
O que é difícil…

O mundo, esse não sabe de mim
Muito menos quer saber de mim
E ele…
Se ele estiver a ver-me
No sentido inverso do meu olhar através das lentes dos meus óculos
Poderá concordar que também eu represento a dúvida
Da realidade subjetiva da imagem
Da existência da distorção...
É que eu tenho andado distante
Com vontade de desistir…

O vento sopra agora mais forte
Enfunando-me a vontade de passar para o papel o que tenho vindo a sentir
E eu tento escrever…
Mas não consigo
O pássaro que voa interrompe constantemente o momento da criação
Levando o meu olhar
Desta feita, o meu cérebro descodifica imagens intermináveis
Mais de mil…
O pássaro cai tombado no chão
Mas nada posso fazer...

Incomunicável, é como eu estou
O mundo não sabe de mim        
O mundo não quer saber de mim
E eu…
Eu continuo distante e desisto
Os lugares já estão todos ocupados
Não há sinal de carros a chegar muito menos a partir
A praceta está completa e o vento acalmou
E o mundo…
O mundo, esse, não quer saber de mim, nem do pássaro…

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