No dia em que eu morrer gostava que fizesse sol… que o dia
amanhecesse tranquilo e terminasse da mesma forma.
Nesse dia, no dia em que eu
morrer, era bom que pudesse passá-lo sozinho e, se o inevitável se desse pela
madrugada ou de manhã cedo, gostava de poder ter estado sozinho na véspera. Apenas
para descomprimir um pouco, assentar algumas ideias e, quem sabe, despachar
alguns assuntos adiados, daqueles que andamos a empurrar com a barriga, ao
longo de toda uma vida.
Entre algumas preocupações relacionadas
com a chegada desse dia, a ideia de partir e deixar a casa desarrumada, roupa
por lavar e engomar, incomoda-me. Mais do que incomodar, stressa-me, para além
de que me é desconfortável pensar que vai haver gente a ter de pôr a minha casa
em ordem, não bastasse a tarefa de dar caminho a uma série de coisas que
ninguém valoriza, a não ser o próprio, o falecido.
Depois, sempre achei que a pior
coisa que pode acontecer a quem lida com um corpo rijo é o deparar-se com um,
ainda por cima, stressado. Deve ser assim como uma espécie de bife rijo, cheio
de nervos.
Pelo menos, é o que dizem… Que os
animais, no matadouro, quando perto da morte, pressentem-na e, por isso,
stressam. Daí os bifes cheios de nervos e a carne rija.
Bom, dizia eu que, no dia em que
eu morrer, gostava de deixar a minha casa arrumada, além disso, as minhas
coisas e a minha vida o mais organizadas possível.
Assim, todos me recordariam dessa
forma, “olha, ali está um gajo que era arrumado e organizadinho!”. No meio de
tanta coisa que é dita na ocasião, elogios desesperados na tentativa de
sublevar a memória do defunto, deve ser das melhores coisas que podem ser
ditas: Um gajo organizado que se vai e que deixa tudo arrumadinho.
A vida toda organizadinha para
além da morte.
Mas, não era só!
Gostava também de tirar o dia só
para mim, a fim de me arranjar e preparar-me para o que virá em seguida. Dar um
toque no cabelo, fazer a barba, bem-feita, pelo menos, uma vez na vida, cortar
as unhas, as das mãos e as dos pés e aparar os pelos do nariz, das sobrancelhas
e das orelhas, para ficar o mais apresentável possível.
Afinal de contas, serei a estrela
da companhia. Já apagada, é certo…
Como já referi, também, no dia em
que eu morrer gostava que fizesse sol…
A ideia de me sentir gelado
incomoda-me, para além do desconforto que isso provoca. Um tipo fica inerte,
tipo rigidez matinal eterna. Como tal, gostava de não ter de passar por isso.
Assim, o pormenor da roupa é importante.
Meia estação, se possível, ou então, equipado à Benfica, calção e manga curta, que
o material climalight da Adidas ajuda,
para além do calor da chama imensa! Parece-me mais confortável, assim…
Uma última preocupação… os óculos.
Sim, porque sem eles não enxergo nada… Já agora, as lentes dos óculos bem
limpas, sem ponta de gordura ou marca de dedada.
E no momento de taparem a caixa, será
bom que se certifiquem disso. É que às vezes, no entusiasmo das despedidas, há
um bafo, uma lágrima fortuita que pinga sobre as lentes provocando uma visão
distorcida.
Depois do assunto arrumado, que
cada um volte para a sua vida, pois que eu seguirei a minha.
Desta forma, até vou ter saudades
disto e a minha memória não servirá de chacota, como aconteceria se eu fosse um
gajo desorganizado e desarrumado, coisa que daria trabalho aos outros, para
além dos comentários que provavelmente se ouviriam proferir:
“Lá vai ele, bom rapaz, é certo,
mas toda a vida foi assim… E agora, quem cá fica que se amole. Bom, pelo menos,
foi-se num dia de sol!…”